sábado, 30 de novembro de 2013

Eric Hobsbawm: a importância do marxismo e da crítica à injustiça social




Por: Bertone de Oliveira Souza¹
       Geneton Moraes Neto²





Eric Hobsbawm : Pecado capital do capitalismo é injustiça social. Pecado capital do socialismo foi a falta de liberdade. Mas ainda há “um vasto espaço para o sonho”                   


 No último mês de outubro fez um ano do falecimento do historiador britânico Eric Hobsbawm. Para quem estuda história, é de conhecimento geral que Hobsbawm é uma das maiores referências em história contemporânea. Seu legado intelectual é vastíssimo e suas contribuições para a renovação do marxismo enquanto perspectiva teórica também foram importantíssimas. Detratores do renomado historiador já tentaram acusá-lo de cúmplice do stalinismo e apoiador de tiranias; nada disso, contudo, pode ser imputado a ele. Hobsbawm faz parte de uma geração de pesquisadores, como E.P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Williams que não se dobraram aos direcionamentos reducionistas de certo marxismo nem descartaram o marxismo para a lata de lixo por conta dos direcionamentos totalitários que o socialismo ganhou no decorrer do século XX.


No início dos anos 1990, ele também contribuiu para uma coletânea de textos organizada por Robin Blackburn com o título “Depois da Queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo” (publicado no Brasil pela editora Paz e Terra e hoje disponível apenas em sebos), que reuniu a contribuição de variados intelectuais, além dele próprio e de Thompson, também de Norberto Bobbio, Habermas, Fredric Jameson, entre outros. Escrito no calor dos acontecimentos que resultaram no fim da União Soviética, os autores analisaram com bastante lucidez o significado histórico daqueles eventos, e, embora algumas análises possam estar superadas, ainda vale a pena a leitura.  Ler sua obra é tanto instigante (incluindo sua autobiografia, “Tempos Interessantes”), como também necessária para compreendermos as raízes de alguns mal-estares sociais e intelectuais de nossa época.

Em 1995, Hobsbawm concedeu uma entrevista para o jornalista Geneton Moraes Neto, e publicada em sua coluna no G1, em que esclarece a importância da União Soviética no século XX, em que sentido ele a apoiou, o significado da morte do marxismo, a importância da utopia enquanto motivação para a elaboração de perspectivas de futuro e da crítica à injustiça social, um dos pontos fortes do marxismo que não perdeu sua atualidade, entre outros temas. A entrevista permanece tão atual como há quase vinte anos. Eu havia guardado esse texto em meus arquivos e reproduzo aqui para reflexão.


Órfãos de Marx, saudosistas do socialismo, parem de chorar. Porque o que sumiu na poeira da História foi o chamado “socialismo real”, um equívoco cinzento feito à base de partido único, Estado onipotente, arte demagógica e imprensa oficialesca. Mas, desfeito o equívoco, abre-se agora “um vasto espaço para o sonho”, território livre para novas utopias. Quem garante é o historiador que conseguiu se transformar em guru dos historiadores, o marxista que fez a autópsia do socialismo : o britânico Eric Hosbawm.



Um acaso do calendário reúne a biografia pessoal de Hobsbawm a um dos principais acontecimentos do século XX : o historiador nasceu em 1917, ano em que Lenin escreveu a palavra bolchevique na história da Rússia. Quando ainda usava calças curtas, Hobsbawm virou comunista, se é que um menino de quatorze anos é capaz de enumerar três diferenças razoáveis entre “centralismo democrático” e pudim de chocolate. Passado o vendaval,ele faz uma avaliação sincera das ilusões que viveu.



Eis a entrevista, agora publicada pela primeira vez na íntegra :    
            

GMN: Qual foi a maior ilusão política de Eric Hobsbawm ?

                      Hobsbawm: “Minha maior ilusão política foi acreditar que a União Soviética poderia ser uma alternativa de desenvolvimento para o Ocidente. Tal crença tomou corpo simplesmente porque, a certa altura do século XX, a economia capitalista mergulhou numa crise catastrófica, à qual a União Soviética parecia imune. Mas, principalmente depois dos anos cinquenta e sessenta, ficou claro que o socialismo soviético não iria cumprir suas promessas nem realizar suas potencialidades. A partir daí,muitos – como eu – deixaram de acreditar no que tinham acreditado quando jovens”.

                    GMN: O marxismo morreu ?

                    Hobsbawm (depois de longa pausa): “Não. Em primeiro lugar, a crítica essencial que Marx fez ao capitalismo é necessária ainda hoje. Como historiador, digo que a abordagem marxista é extremamente útil para que se entenda como as sociedades mudam- não apenas as sociedades capitalistas mas também as sociedades socialistas, hoje inexistentes. Não há dúvida de que uma grande parte das crenças do marxismo já não pode ser considera válida. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio”.

                    Hoje, um grande número dos que poderiam estar na esquerda – socialista ou revolucionária- já não sabe em quem acreditar”.

                     GMN: O senhor lamenta ter apoiado os governos soviéticos ?

                    Hobsbawm: “Não lamento, porque nunca vivi na União Soviética. Quem, como eu, apoiava os governos soviéticos não estava pensando na Rússia, mas em nossos próprios países e no resto do mundo. Porque,para o resto do mundo,a existência da União Soviética, ainda que fosse ruim para a Rússia, teve um desenvolvimento positivo. Sem a União Soviética,não teríamos vencido a Segunda Guerra.

                 Sem a União Soviética, o capitalismo não teria sido reformado, como foi, depois da Guerra. Os que, no Ocidente, foram marxistas ou apoiaram o movimento comunista não têm do que se lamentar, porque estavam apenas tentando alcançar, em seus próprios países, objetivos que eram bons. Quando tiveram a chance de mudar os seus países, mudaram para melhor. Mas, para tanto, pediram o apoio de um regime que impôs um enorme sofrimento ao povo russo – mais do que a qualquer povo”.

                      GMN: Qual foi o pecado capital do socialismo ?

                      Hobsbawm : “A falta de liberdade foi o pecado capital, particularmente para os intelectuais. Mas o pecado capital do socialismo foi acreditar que a economia poderia ser operada inteiramente através de um planejamento centralizado, sem a atuação dos elementos do mercado. Os consumidores, os cidadãos comuns, não tinham a liberdade de comprar o que queriam. O que existia, basicamente, era um exagero do papel do Estado Central como um arquiteto da nova sociedade.

                       Marx disse, em relação às suas teorias, que o importante não era interpretar o mundo, mas modificá-lo. Ficou provado que é mais difícil mudar o mundo através das linhas de análise marxista do que interpretá-lo. Além de tudo, o desenvolvimento dos partidos socialistas foi profundamente influenciado – e distorcido – pelo fato de que o marxismo tomou o poder na Rússia. O que aconteceu? A União Soviética dominou por anos e anos o desenvolvimento do marxismo e do movimento comunista internacional, o que acabou provocando uma divisão – mais negativa do que perigosa – entre as duas facções do marxismo: os social-democratas e reformistas de um lado; os comunistas e revolucionários de outro”.

                    GMN: E qual é o pecado capital do capitalismo ?



                    Hobsbawn: “O pecado capital do capitalismo é a injustiça social. Isso quando nós falamos em termos morais. Em termos práticos, o pecado é que o capitalismo é um sistema que desenvolveu um mundo que precisa de administração e planejamento global – mas o próprio capitalismo não pode prover esta administração e este planejamento. O capitalismo, então, deixa o mundo com sérios e crescentes problemas, para os quais não encontra soluções”.



                                        GMN: O senhor disse uma vez que “o problema básico da história marxista é descobrir como a humanidade passou da Idade da Pedra para a Idade do Átomo”. Se o marxismo não conseguiu, quem é que vai conseguir explicar?

                     Hobsbawm: “Em primeiro lugar, não acredito que o marxismo tenha falhado na explicação do desenvolvimento da História. Eis um grande debate que se desenvolve entre historiadores e filósofos. A contribuição do marxismo permanece essencial. O que haverá é um marxismo modificado. A crença dos marxistas na determinação única do desenvolvimento econômico provou ser inadequada. Deve-se levar em conta a análise de fatores como a cultura e as ideias”.

                     GMN: Haverá lugar na história para uma nova tentativa de aplicar a ideia marxista de uma sociedade sem classes?           

                    Hobsbawm: “O socialismo real – tal como o tivemos até há poucos anos – não vai voltar. Mas há lugar, sim, para uma nova tentativa de construir uma sociedade de liberdade e de igualdade, em que os seres humanos terão a chance de desenvolver todas as suas capacidades. Eu espero que haja espaço para movimentos que favoreçam a justiça social”.

                        GMN: O fim do socialismo foi um choque para as esquerdas. Qual será o próximo sonho? Um jovem arriscaria a vida para implantar uma sociedade liberal-democrata, como se arriscou antes por outros ideais?

                         Hobsbawn: “Uma democracia liberal é algo pelo qual ninguém é capaz de morrer. Nem é bom que um jovem esteja preparado para morrer tão facilmente por uma causa. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio. Hoje, um grande número dos que poderiam estar na esquerda – seja a esquerda socialista, seja a esquerda revolucionária – não sabem em quem acreditar”.

                         GMN: O vácuo pode criar espaço para novos sonhos?

                        Hobsbawn: “Há um vasto espaço para o sonho. Mas também há o perigo de que esse espaço seja preenchido por um tipo errado de sonho: por sonhos nacionalistas, por sonhos racistas, por sonhos de ressureição de religiões fundamentalistas. De qualquer maneira, problemas como a pobreza e a desigualdade, cada vez mais presentes no desenvolvimento global da economia, assumem uma tal proporção que haverá certamente espaço para movimentos políticos que tentem resolvê-los”.

                         GMN: É possível prever que movimentos serão esses ?

                        Hobsbawn: “Alguns desses movimentos serão os antigos movimentos de esquerda. Há no Brasil, por exemplo, um partido de trabalhadores que é similar a partidos de massa que existiram no passado na Europa. Em muitas partes do Terceiro Mundo, há lugar para movimentos iguais aos que existiram antes. Não devemos, portanto, eliminar os movimentos do passado.

                      A verdade é que o vácuo ideológico será muito mais sério nos países desenvolvidos, os países ricos. Porque nestes países a crise da fé e das crenças – e também a mudança provocada pela extensão da industrialização a países do Terceiro Mundo – terão um efeito mais dramático”.

                       GMN:A desilusão das esquerdas dará, então, lugar a novos sonhos num futuro próximo ?

                        Hobsbawm: É possível que sim, mas, felizmente, historiadores não são profetas.

Nós só tratamos do passado. Historiadores fizeram previsões que provaram ser inexatas. Hoje, com exceção do instituto de pesquisas econômicas dos governos, todos são céticos na hora de fazer previsões…”.

                       GMN: Como é que a História vai julgar Fidel Castro ? Daqui a meio século, ele vai receber um julgamento positivo ou vai ser condenado como o último ditador comunista ?

                         Hobsbawm: “O julgamento será positivo, sem dúvida alguma. Fidel Castro será claramente a figura mais importante da história nacional de Cuba. Quanto à América Latina como um todo, Fidel Castro será um símbolo de libertação – ainda que as políticas de libertação que ele adotou não tenham sido bem sucedidas. Em todo caso, será visto não como um homem não muito bom ao governar o próprio país. Porque, sob o aspecto econômico, eles fez um péssimo trabalho. Por outro lado, as reformas sociais são absolutamente esplêndidas. Há fraquezas no regime cubano, mas Fidel Castro vai ter um papel bastante positivo nos julgamentos históricos do futuro”.

                         GMN: O senhor diz, na última página do livro “A Idade dos Extremos”, que, no final do Século XX, não sabemos para onde vamos. É bom ou é ruim não saber para onde caminha a humanidade?

                         Hobsbawm: “Não saber para onde vamos é o destino da humanidade. Algumas vezes,o homem pensa que sabe para onde vai. Mas, em geral,a gente erra quando pensa que sabe”.

                         GMN: O senhor diz que o homem hoje tem a ilusão de que vive num “eterno presente”. Isso afeta a percepção da História?

                         Hobsbawm: “O “eterno presente” é, em parte, resultado da quebra de relações entre as gerações e, por outro lado, consequência da sociedade de consumo. A desvantagem é que é impossível que as pessoas entendam a situação em que vivem sem que saibam como as coisas surgiram, antes. A maioria das pessoas na verdade gostaria de estabelecer tal continuidade entre elas e o passado. Não é fácil estabelecer tal continuidade hoje, porque as mudanças do mundo têm sido tão rápidas e tão profundas que a experiência de vida da maioria das pessoas é marcada pela descontinuidade”.

                           GMN: A televisão é culpada por criar a ilusão de que vivemos todos num eterno presente ?

                           Hobsbawm: “Sim. Mas este é apenas um aspecto de uma sociedade de consumo que atua satisfazendo os desejos e as vontades das pessoas a qualquer momento.  A sociedade de consumo se interessa pelo que as pessoas fazem agora. A lógica do mercado é ganhar dinheiro com o que as pessoas vão gastar agora – não com o  que vão gastar daqui a vinte anos”.

                       GMN: O senhor é frequentemente citado na imprensa como “o maior historiador vivo”. Aceita o título?

                      Hobsbawm: “É difícil julgar. Não me vejo como o mais importante historiador, mas é uma sensação agradável ver que as pessoas pensam que os livros que escrevi são importantes. Sinceramente, não me cabe julgar se essas pessoas estão certas. Em todo caso, penso que exageram….”.

                     GMN: Quem é Eric Hosbabwm, por Eric Hobsbawm ?

                      Hobsbawm : “Tudo o que posso dizer é que tento tentado ver como, num determinado período da História, as coisas se juntam para formar um todo. Porque existe, sim, uma conexão entre as diferentes partes da vida”.

(“O comunismo representou o ideal de transcender o egoísmo e servir a toda a humanidade, sem exceção”, escreveria Hobsbawm em 2002. “Emocionalmente, pertenço a uma geração ligada por um quase inquebrável cordão umbilical à esperança de uma revolução mundial, não importa o quão cética ou crítica diante  da União Soviética”. Professor da Universidade de Oxford, Nial Ferguson perguntou, num artigo publicado sobre Eric Hobsbawm em setembro de 2002, no Daily Telegraph :

“Como pode um brilhante acadêmico cometer um erro político por tanto tempo – por cinquenta anos, para ser exato, período em que foi membro do Partido Comunista? Como pode ele continuar a acreditar, como ele claramente faz, que alguma coisa pode ser salva da lamentável empresa de Lenin e seus asseclas? A tragédia do comunismo – o que custou a vida de dezenas de milhões – é que um homem com a inteligência de Eric Hobsbawm não pôde ver – e ainda não pode – que o comunismo foi a negação tanto da liberdade quanto da justiça, em nome de um espúrio e falso igualitarismo”.

As simpatias pelo ideal comunista ainda hoje dividem historiadores. Quando uma edição de bolso do Manifesto Comunista apareceu – surpreendentemente – no terceiro lugar na lista de livros políticos mais vendidos  publicada toda semana pelo Mail on Sunday, procurei Kenneth R. Minogue, titular da cadeira de Ciência Política da London School of Economics :

– É preocupante ver como um melodrama simplista como este Manifesto é tão popular – disse-me, na entrevista. Eu diria que é simplesmente notável a simplicidade de gente que acredita que um intelectual alemão – escrevendo em 1848 – possa entender a essência do mundo moderno. A um amigo que quisesse entender as tentações do totalitarismo, eu recomendaria que lesse o Manifesto Comunista e ouvisse aquela canção do musical “Cabaret” chamada  “Tomorrow Belongs to Me” (“O Amanhã me Pertence”). Tanto o Manifesto como a canção exibem um belo otimismo e uma simplicidade de raciocínio que terminam levando à morte e à destruição.

Hobsbawm resumiria em três linhas, no parágrafo final do livro autobiográfico  “Intersting Times” o que sente no início do século XXI :

- Não nos desarmemos, ainda que os tempos sejam insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não ficará melhor por conta própria).

(*) Entrevista gravada em Londres, em 1995. A íntegra da entrevista com Eric Hobabawm – assim  como com o filho do líder soviético Nikita Kruschev, com um general da KGB e com o agente encarregado de eliminar Leon Trotsky -  foi publicada no nosso livro “DOSSIÊ MOSCOU”



1- Historiador, professor do curso de História da UFT.
2 - É um jornalista brasileiro.


Fontes: