terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O que é ser de esquerda no século XXI?

Por: Rudá Ricci


Artigo reflete sobre burocratização da esquerda mundial e a emergência de uma esquerda não partidária no final do século XX. Sugere o ideário atual do que se poderia denominar de forças de esquerda no mundo e finaliza analisando a contribuição do lulismo para o debate da esquerda brasileira.


  1. A crise é anterior à queda do Muro de Berlim. 


    A grande imprensa patenteou e parte das lideranças de esquerda aceitou que a partir da queda do Muro de Berlim a identidade das esquerdas teria desmanchado no ar.

    Trata-se mais de uma frase de efeito que uma análise precisa. A crise de identidade das esquerdas já havia se instalado antes. Muito antes. Primeiro, quando da crítica mundial ao burocratismo do bloco soviético, que teria criado um sistema de dominação estatal muito peculiar, fomentando a corrupção endêmica que mais tarde se perceberia espraiada pela sociedade e que foi plasmada em máfias locais. Mas a situação mais aguda da crise se deu com a ruptura entre a dimensão política e cultural, que mergulhou todo sistema partidário numa sistêmica crise de representação. Em outras palavras, com o processo radical de globalização econômica, nos deparamos com a separação das dimensões da sociedade moderna, tal como sugerido por Alain Touraine em seu livro “Poderemos Viver Juntos?” Na prática, o mundo político se agregou ao mundo econômico, não qualquer mundo econômico, mas esse globalizado. Essas duas dimensões – econômica e política – se separam, por seu turno, da dimensão cultural, da identidade cultural, dos valores, das tradições, das crenças. Trata-se de uma ruptura social das mais importantes, que deslegitima o mundo da política institucionalizada.



    Nesta esteira analítica, Manuel Castells, em um encontro organizado pelo então Governo Fernando Henrique Cardoso, sugere que o papel do Estado contemporâneo seria o da criação de ambiente facilitado para o trânsito do capital globalizado. Daí nomear o Estado facilitador. Justificam-se, por aí, várias políticas de estabilidade econômica para sinalização de agentes econômicos, principalmente agentes do mercado financeiro, para que haja investimento. Nesse sentido e nessa visão, a política fica subordinada aos mercados.

    Esta é a sugestão original que define a separação radical do Estado para com a cultura, o mundo cotidiano daquele que José de Souza Martins denominou de “homem simples”. E aqui ingressamos numa profunda crise da política formal.

    Alain Touraine, no livro já citado, prevê a radicalização das ações das populações não incluídas no atual processo de globalização e cada vez mais marginalizadas dos centros de poder. Sua tese sugere a emergência de vários movimentos fundamentalistas, que teriam, como motivação da sua ação absolutamente radical e extremada, a defesa do seu lugar e do seu passado. Ora, na medida em que o cidadão vê que o mundo globalizado, o Estado e as forças institucionais internacionais estão num mesmo caminho que se confronta com a sua identidade, o seu lugar, a sua família, e que ele na prática morreu culturalmente, é aí que vem, portanto, a entrega da sua vida por uma luta pelo seu passado.

    O que essa visão nos traz? Traz-nos uma ruptura da estrutura partidária em relação ao cotidiano. E, com ela, uma profunda crise de representação, que já havia se expressado desde antes da Segunda Guerra Mundial. Robert Michels já havia analisado a excessiva burocratização dos partidos, que distanciaram sua lógica da lógica das comunidades, das ruas. No caso brasileiro em específico, isso é mais fácil de ilustrar, já que recentemente percebemos em várias CPIs que os personagens centrais acusados de corrupção não eram suas lideranças públicas, mas os membros alocados nos escaninhos da burocracia partidária (o tesoureiro, o secretário, pessoas que a militância quase desconhece). O que ocorreu? Os partidos políticos constituíram, nos últimos 20 anos, um mercado eleitoral que, para sustentar, precisavam ter laços diretos com a economia globalizada, que os financiam. O descolamento em relação ao cotidiano parece uma conseqüência natural, perdendo a fonte da energia moral da sociedade, dos interesses difusos, da pluralidade.

    Os partidos - a esquerda também ingressou nesta saída fácil – passaram nos últimos vinte anos a compreender um bom governo com administração do Estado que facilita a atração e o fluxo de capitais, como aparelho que beneficia essa facilitação do mercado do desenvolvimento. Um viés declaradamente economicista, onde a crença permanente é que o crescimento econômico, a melhoria de investimentos externos e o equilíbrio da balança comercial, gerariam renda, empregos e justiça social. Algo que Amartya Sen já comprovou que não se trata de lógica matemática. Hoje, são utilizados indicadores de mercado para analisar o vigor da economia nacional. Índices, como IDH, raramente são acionados para monitorar a lógica de nosso desenvolvimento. Ou seja, são indicadores do mercado financeiro acabam compondo um dado do  realismo político ao qual nos vemos submetidos.

    2. Os partidos estão apartados das ruas

    A questão é que emergem, daí, alguns problemas graves, principalmente para a esquerda.

    O primeiro problema, e o mais grave, é que a sociedade civil não se vê mais representada nas organizações de esquerda. Na medida em que a esquerda não consegue mais se alojar, representar e conseguir ter canais de comunicação com as ruas, ela deixa de ser a esquerda como historicamente ela se constituiu.

    O segundo problema é que a esquerda, enquanto teoria, não tem como centro a manutenção do Estado mas, pelo tudo o que foi apresentado neste texto, passou a se limitar a este tema. O fato é que a identidade original da esquerda nunca foi a manutenção do aparelho de Estado. Pelo contrário, era justamente a construção de um projeto que abriria o Estado cada vez mais ao controle da sociedade (ou, para alguns, para o controle de um segmento de classe). Desde a análise sobre a Comuna de Paris, em Marx; passando pelo poder dos sovietes que se tornou slogan na revolução russa; passando pelos estudos do exílio mexicano de Trotsky; pelos estudos sobre conselhos operários de Gramsci, Togliati e os comunistas articulados ao redor do Il Manifesto. Apenas para citar clássicos. 

    A esquerda mundial não partidarizada (um fenômeno novo que emerge no final do século XX) hoje discute como transformar o Estado num aparelho poroso às demandas sociais, como que poderemos atrair a diversidade cultural e de representação social e de identidade dentro do aparelho de Estado. A esquerda não partidarizada, não por coincidência, acolheu a agenda que era tradicionalmente defendida pelos partidos de esquerda. Estou me referindo à esquerda organizada em redes mundiais, em fóruns internacionais, em ONGs, em movimentos sociais, quase sempre desvinculados de partidos políticos.

    Mesmo quando os partidos tentam fazer isso instituindo secretarias e fóruns que dialogam com pautas e demandas específicas que ecoam nas ruas, como secretarias de Direitos da Mulher, secretaria de Direitos dos Gays, Lésbicas, Transexuais e Bissexuais, secretaria dos direitos de etnias, nunca consegue fundir tais estruturas temáticas num projeto societário, ficando a impressão que se trata de responder a demandas de uma clientela. Tanto é verdade que vemos os partidos de esquerda, ao assumir um governo, esquecerem absolutamente as políticas sociais como as centrais, e a política central passa a ser a economia, passa a ser a administração do Estado pelo olhar da economia, a reforma do Estado sob a ótica de bons gestores, levando bons quadros da engenharia administrativa empresarial para dentro do Estado. O fato é que as ruas estão longe dos governos porque estão longe dos partidos políticos. A crise da esquerda européia tem origem nesta dramática contradição.

    O que as ruas vêm nos dizendo como um lampejo de solução e de reconstrução de um projeto de esquerda, é que talvez a questão central hoje seja uma nova forma organizativa de representação política e uma nova forma de gestão de território. Em termos de organização, o que se sugere neste campo não partidário são estruturas horizontais, em rede, que alguns denominam de “structural holes”. Assim como a estrutura sindical brasileira vem se enrijecendo e se burocratizando, de tal maneira que a maioria dos movimentos sociais trabalhistas ocorre fora da estrutura sindical, principalmente no meio rural (caso do MST, da luta contra os atingidos por barragem, direitos da mulher e assim por diante), a maioria das lutas sociais não ocorre mais a partir dos partidos. E isso afeta a estrutura de representação do Congresso Nacional. Porque os mecanismos institucionais, que teriam nos partidos o centro de debates do parlamento são abortados justamente porque não existe hoje um canal de comunicação com a lógica das ruas.

    A sociedade civil vem criando as suas saídas, muito frágeis ainda, mas vem criando suas
    estruturas de rede, estruturas horizontalizadas, e começa a discutir a gestão participativa
    de território.

    3. A esquerda do século XXI

    Mas, afinal, o que seria um projeto de esquerda nos dias atuais, como superação da crise que estou sugerindo? Começo pelo contrário do que seria um projeto de esquerda, para efeito meramente didático.

    Antes, uma breve nota sobre este debate. Norberto Bobbio inaugurou este debate contemporâneo, num momento em que se pregava que a esquerda teria perdido sua identidade. Bobbio sugeriu que o signo da esquerda continuava sendo a luta pela igualdade social, enquanto a não-esquerda teria na liberdade individual seu principal signo. Dele, seguiram-se diversas outras teses, muitas delas articulando liberdade e igualdade no ideário da esquerda do século que se anunciava. Este foi o caso de Giddens, embora a distinção entre esquerda e direita tenha sido muito relativizada pelo autor.

    Perry Anderson e muitos outros autores revisitaram a história da esquerda (em especial, européia) num grande debate que se desenrolou na segunda metade dos anos 90 do século passado.

    O que se discute, principalmente na Europa e também na América Latina, sobre o que é direita, hoje pode ser resumido em cinco pontos:

  • 1. Sua primeira característica é a defesa da centralização da decisão e do poder, eliminando qualquer mecanismo de participação social porque acredita que, do ponto de visa do direito, eles representam legalmente o interesse que foi definido pelo voto. Relaciona-se com a noção de ordem social, fundada na manutenção de instituições tradicionais da política. Ao ser outorgado, ao ser definido pelo voto, o representante legal tem todo o direito de governar como quiser, mas se esquece do problema central que é o limite da representação. Diria que esta postura alojase no que denominamos de representação fiduciária, genérica, em que o eleitor confia no eleito a partir de um discurso geral, filosófico, conferindo uma imensa liberdade de ação ao representante. Na prática, sustenta, muitas vezes, uma distância com o cotidiano daquele que é o real portador do poder do representante: o cidadão;

  • 2. O segundo ponto a destacar é que toda a direita contemporânea acredita que a política e, principalmente a ação de governo, tem que facilitar os mecanismos de investimento e de movimentação de capital, tanto financeiro quanto produtivo. Seria possível dar mais um passo nesta direção e afirmar que a direita adota os princípios e lógica empresarial como pressupostos de good governance;

  • 3. Terceiro, relacionado ao item anterior, a direita contemporânea sustenta que a competição de mercado e a lógica empresarial definem as relações sociais, porque são mais objetivas e eficientes. Assim, é cada vez mais comum, principalmente aqui, mas não só no Brasil, que todos os mecanismos de avaliação de serviço público adotem os instrumentos de empresa, como se o Estado tivesse a mesma lógica de uma empresa. As relações sociais são quase todas marcadas, do ponto de vista dos governos de direita, por esta concepção empresarial de gestão;

  • 4. Quarto, a substituição do conceito de promoção social pelo de proteção social. Trata-se de uma distinção clássica, no século 20, entre esquerda e direita. A proteção significa manutenção da existência, mas não melhoria das condições de vida. Daí se limitar à segurança e saúde e, secundariamente, à educação. Já a promoção social significa que o Estado não só mantém a vida naquela condição, mas investe na sua contínua melhoria, no seu desenvolvimento pessoal e comunitário, na sua superação. É papel do Estado garantir a equidade social, e, portanto, é política de Estado de um governo de esquerda transferir renda para promoção social, e não apenas para sua manutenção;

  • 5. Finalmente, o nacionalismo e a xenofobia, mais fortes na Europa. Todos os partidos de direita europeus têm essa marca central da luta contra a migração, pela construção de mercados cativos para a população nacional, e assim por diante.

    Pela negação, o que seria ser hoje de esquerda?

    Nesse sentido, em primeiro lugar, volto ao tema central que estou tentando advogar aqui que é o controle social e a democracia participativa, e não o seu inverso, o centralismo político. Muitas lideranças da esquerda mundial se voltam para discutir o que se denomina participacionismo, inclusive mecanismos e instrumentos que o Brasil criou de gestão participativa, de conselhos, de orçamento participativo, de mecanismos de controle territorial que sabemos ser frágeis, que têm contradições, mas que, nesse sentido, estamos anos-luz à frente da experiência européia. A quantidade de delegações de esquerda que vêm ao Brasil para compreender esses mecanismos e para entender como é possível fazer uma reforma democrática de Estado, em que novamente a política se encontre com as ruas e não se torne apenas um trabalho de profissionais e técnicos, com um linguajar, uma concepção, uma pauta absolutamente distante do cotidiano dos eleitores.

    Segundo, a descentralização das políticas. Na medida em que as ruas se aproximam da política do Estado é fundamental que se dêem condições à população de ela se incorporar às concepções e ao controle das políticas públicas desenvolvidas. Terceiro, solidariedade e promoção humana. E, finalmente, o internacionalismo.

    Para concluir, devo reafirmar que a vocação de qualquer projeto de esquerda é, sem dúvida nenhuma, a democracia ampla, com participação da população, objetivando a igualdade e a justiça social. Controlar os meios de produção, mas não necessariamente estatizá-los por completo, é hoje um quase-consenso entre as esquerdas de todo o planeta.

    As experiências do bloco soviético e da China diluíram este princípio como pedra fundamental de um projeto de esquerda, não em virtude do abandono da relação entre propriedade privada desses meios como fundamento da exploração do trabalho. Mas por dois outros motivos: a estatização não gera igualdade política e social. Muitas vezes promove o contrário. E, ainda, porque nem todo mercado é capitalista ou gera exploração do trabalho. Esta última conclusão motiva ainda debates acalorados. Mas envolve teóricos de fôlego. No Brasil, vale destacar os ensaios recentes de Paul Singer, para citar um exemplo, retomando teses e princípios do socialismo utópico.

    4. Lulismo: uma profunda mudança na tradição da esquerda tupiniquim.

    Um toque de análise conjuntural auxilia na localização dos dilemas da esquerda tupiniquim a partir da inovação empregada pelo lulismo. O Lulismo é uma convergência de três matrizes discursivas inusitadas, seja na história da esquerda em geral, seja da esquerda brasileira.

    A primeira matriz é o pragmatismo sindical metalúrgico do ABC. Lula é uma liderança pragmática. Conhece a forma de organização do movimento sindical metalúrgico, principalmente do ABC. Quando afirma que não é de esquerda, mas metalúrgico, embora seja um chiste, na verdade, sinaliza uma peculiaridade no interior da esquerda contemporânea brasileira. Ele é uma liderança metalúrgica que possui uma ideologia própria, uma organização apoiada na máquina sindical, apoiada no pragmatismo das negociações e numa transformação de tipo etapista, onde a lógica é o passo a passo da conquista de uma pauta negociada permanentemente. O sindicalismo metalúrgico é centralizado, muito agressivo e profundamente pragmático.

    A segunda matriz, e que parece surpreendente, é o liberalismo econômico. Todas as organizações de direção da economia do país têm seus fundamentos no liberalismo econômico: Banco Central e Ministério da Fazenda, em especial, subsumido no pragmatismo do governo Lula. Nesses ministérios, atores da esquerda clássica não têm lugar. Pelo contrário, as correntes históricas de esquerda não estão no centro das decisões econômicas e de planejamento do governo federal, e isso faz com que o governo Lula tenha condições de negociar com várias forças e partidos que não são pautados pela clareza ideológica. Em função do pragmatismo, abrem-se espaços dentro dos ministérios para as forças mais à esquerda, em alguns lugares mais à direita, e com isso compõe um acordo que, muitas vezes, transferiu o “acordo do mensalão” para dentro dos ministérios.

    A terceira matriz discursiva do lulismo é o controle burocrático da prática política. Esta matriz tem origem nas organizações marxistas dos anos 60 e 70 que ainda estão instaladas no interior do PT, embora sejam minoritárias. Trata-se de uma matriz discursiva que substituiu, nos anos 90, a lógica inicial do petismo, com características mais consultivas e de processo decisório mais horizontalizado, originário da Teologia da Libertação e das formulações anti-soviéticas de alguns setores de intelectuais e professores universitários do Rio de Janeiro e São Paulo (como Marilena Chauí, Eder Sader, Carlos Nelson Coutinho, entre outros). Teve sua base inicial de sustentação no diretório estadual do PT de São Paulo, onde estruturou uma profissional burocracia interna, que controlava diretórios municipais (principalmente na região oeste do Estado, onde a tradição de mobilização social sempre foi mais frágil e escassa). Em meados dos anos 90, as lideranças desta vertente (espraiada em várias correntes ou sub-correntes internas do partido) assumiram postos de destaque na direção nacional do PT. Pouco depois, coordenou as campanhas eleitorais para a Presidência da República, incluindo a vitoriosa, de 2002. 

    A burocracia partidária, desde então, passou a comandar, dos bastidores do governo, a política real, os acordos com prefeitos, a mudança de um parlamentar de um partido para outro, a construção de uma maioria, a definição de políticas orçamentárias, a condução da elaboração do orçamento muito antes da discussão no Congresso Nacional. Obviamente que acabou por criar uma cultura política interna, um saber político que se instalou nos escaninhos do governo Lula. Um exemplo nítido é a negociação e elaboração do orçamento para a área agrária rural nacional, que não se dá pela via formal da política. O Plano Safra é discutido e definido em julho, muito antes de ser votado pelo Congresso Nacional. Qualquer liderança social, empresarial ou não, da área rural, sabe que a definição do orçamento se dá em julho, pois o ano agrícola é definido pelo período agosto-agosto. As forças políticas e econômicas reais do campo (MST, CONTAG, FETAGs, empresariado) negociam, nesse período, ou seja, transformam o Parlamento – enquanto instituição – num coadjuvante. Os interlocutores da política formal são técnicos, cargos de confiança instalados no segundo escalão do governo federal.

    Este mecanismo originário de controle político pela burocracia partidária foi, aos poucos, sendo transferido por um núcleo dirigente que não envolve o governo como um todo e nem mesmo o PT como um todo.

    Um último exemplo da cultura emergente que é herdeira da lógica da burocracia partidária é a operacionalização da política de coalizão presidencialista enfeixada pelo lulismo. Uma coalizão que fez da partilha de cargos públicos uma blindagem que praticamente inviabilizou qualquer discurso hegemônico da oposição. Mas como qualquer coalizão vitoriosa em nosso país depende do partido “omnibus” que responde pela sigla PMDB, esta opção vai tomando rumos imprevistos. Lembremos, apenas, que o conceito de partido “omnibus” foi criado por Fernando Henrique Cardoso para nomear os partidos que têm como intenção reunir várias doutrinas e ideologias para atingirem o objetivo comum, no caso, a manutenção de seu poder de influência direta junto ao poder executivo (em todos seus três níveis). O poder do PMDB reside em sua expressiva força parlamentar e no número de prefeitos e vereadores. Significa dizer que é um partido que se acomoda à peculiaridade das culturas locais, territoriais. Em algumas localidades, possui lideranças mais populistas; em outros, mais conservadoras; em outras, ainda, detentoras de discursos éticos e moralistas. Mais à esquerda ou mais à direita, é o protótipo da acomodação e do pragmatismo. É aí que se casa com o lulismo.

    O que há de interessante nesta equação é a criação de um sistema de lealdades que garantem autonomia ideológica (ou programática) à cúpula do governo federal, como se as lideranças regionais incorporadas à coalizão de governo tolerassem as identidades programáticas do lulismo desde que pudessem exercer seu poder ao longo do território nacional. Uma situação muito parecida com o que a literatura dedicada ao estudo do sindicalismo rural brasileiro denominou de “Complexo Contag”. 

    A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) é a maior confederação de trabalhadores do Brasil. A partir do final dos anos 60, em plena ditadura militar, foi retomada por lideranças nordestinas próximas ao PCB, mas que fizeram composições com outras forças políticas ao sul do país. Nos anos 70, o núcleo central da CONTAG forjou uma fortíssima coalizão de gestão, envolvendo federações estaduais e sindicatos (STRs). Também incorporou em seu corpo de assessores técnicos e lideranças oriundas do PCB e MR8. Na prática, um conflito local era prontamente atendido por advogados e técnicos das federações e mesmo da CONTAG. Um dirigente estadual ou local envolvido com este sistema de lealdades recebia, em época de eleição das direções sindicais, apoio das instâncias superiores e vice-versa. 

    Uma trama complexa porque não era raro que numa localidade surgisse uma oposição sindical ideologicamente próxima da direção da CONTAG mas que não recebia qualquer apoio da direção da confederação justamente porque não fazia parte do sistema de lealdades que sustentava todas as direções. Tempos depois, era possível perceber que este sistema transformou-se numa articulação de cúpulas dirigentes, com pouca possibilidade de participação direta da base sindical no processo decisório. O único momento de participação foram os congressos nacionais da CONTAG, um evento, não um processo de gestão política.

    A coalizão presidencialista lulista possui este signo. Não interfere (ou interfere raramente) nas disputas regionais. Procura limitar a força de seu próprio partido onde lideranças de partidos que fazem parte da coalizão têm relevância eleitoral. Em troca, ganha liberdade programática, tendo utilizado como moeda cargos e ministérios. Como se oferecesse anéis para preservar os dedos. Uma troca política nítida, definida, que se esboçou com mais clareza quando do ingresso do PMDB no governo Lula. Por este motivo, é fundamental que se entenda que o PMDB tem responsabilidade central na conformação final do lulismo. Até então, o lulismo ainda era depositário de certa lógica petista, onde o partido liderava (ou subjugava) com mão de ferro outros aliados (daí o mensalão). A partir da entrada do PMDB no governo federal, desenhou-se a coalizão presidencialista lulista com todas suas cores. Os dirigentes do PT que operavam os bastidores dos acordos entre partidos da base governista se retraíram às disputas internas.

    O núcleo gestor do lulismo passou a receber um salvo conduto da cúpula de todos partidos de sua base política, incluindo o seu próprio partido.

    O que o lulismo pretende organizar no Brasil é uma diminuição significativa dos espaços de oposição. No campo popular, ele já conseguiu, e, no campo partidário, praticamente também. Treze dos governadores eleitos em 2006 controlam de 50% a 75% das bancadas estaduais e federais, em função de acordos de governo ou alianças eleitorais. Obviamente um governo pragmático como o lulista sabe que é o caso de negociar com lideranças regionais e governadores, porque estará alcançando 50% a 75% da sua base parlamentar.

    Ora, temos aqui uma formação de um importante núcleo de poder político, fluido do ponto de vista ideológico.

    Pragmaticamente, o Lulismo vem construindo uma nova referência para a esquerda latino-americana que disputa com o chavismo. Temos, portanto, a obrigação de analisar o Lulismo como uma nova forma de projeto de gerenciamento da política, pela esquerda, que caminha, na prática, para um programa de centro (não necessariamente centroesquerda).

    O projeto do Lulismo não é um projeto de país, como Caio Prado Júnior dizia (como é difícil, como afirmava este autor, construir um projeto nacional em nosso país), até porque o Lulismo vem construindo um projeto de poder, muito bem construído e até o momento vitorioso. A questão é se esse é o projeto da esquerda no Brasil.







Referências:

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  • MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do Homem Simples. São Paulo: Contexto, 2008.
  • MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1982.
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