Implicações econômicas e de gênero
Por: Elenilton da Cunha Galvão
“A
luta contra a miséria e a fome tem dupla dimensão:
a
emergencial e a estrutural. A articulação entre as duas dimensões
é
complexa e cheia de astúcias. Atuar no emergencial
sem
considerar o estrutural é contribuir para perpetuar a miséria.
Propor
o estrutural sem atuar no emergencial é praticar o
cinismo
de curto prazo em nome da filantropia de longo prazo”.
(Betinho)
"A
bondade é o melhor status que o ser humano pode comprar"
"Recicle
seus valores. Eles podem gerar lucros"
(Trechos
do filme Quanto Vale ou é por Quilo?)
Uma
análise simplificada do semiárido brasileiro seria dimensionarmos
sua extensão abrangido somente o Nordeste, ainda que este
corresponda a cerca de 90% do mesmo, a região setentrional de Minas
Gerais também divide o clima supracitado, cerca de 21 milhões de
pessoas vivem no semiárido brasileiro e suas vidas são guiadas
conforme os caprichos do clima local que é caracterizado pela baixa
humidade e pouco volume pluviométrico, com precipitações
irregulares que marcam essa região por secas constantes que desde a
chegada dos portugueses aos dias atuais somam cerca de 72 grandes
estiagens conforme registros da ONG Asa Brasil.
De vegetação característica, a caatinga, único bioma
exclusivamente brasileiro
e bastante heterogêneo é rica
em biodiversidade mas possui solo “raso”, ou seja, se escavarmos
encontraremos rocha a poucos metros de profundidade dificultando o
armazenamento de água e facilitando o escoamento da mesma que se
transforma em pequenos córregos e açudes que secam rapidamente.
Erigidos
nessa região há cerca de 1.134
municípios de nove estados brasileiros, em uma área de
aproximadamente 969 mil Km2
,
o que representa cerca de 20% dos municípios e 11% do território
brasileiros. Segundo
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a economia
do semiárido é basicamente de pecuária extensiva, atividades
agropastoris, e agricultura familiar de baixo rendimento que entra em
acentuado declive em períodos de seca causando muitas vezes a
falência das lavouras e dos rebanhos. Devido ao manejo incorreto do
solo em muitas regiões os processos erosivos estão se
intensificando e constituem os indícios mais marcantes do processo
de desertificação da caatinga agravando exponencialmente a
situação das comunidades do semiárido, em artigo da Embrapa “A
questão da degradação torna-se mais complexa quando se diferenciam
os vários tipos de impactos que podem ocorrer em virtude das
atividades antrópicas no uso inadequado dos recursos naturais”,
esses fatores aliados ao baixo investimento governamental acarretam
em processos migratórios dos povos que ali habitam para os grandes
centros ou outras regiões, logo, ao contrário da maioria dos
processos migratórios brasileiros que são marcadamente econômicos,
os famosos êxodos rurais, estes por sua vez dão-se pela
impossibilidade de sobrevivência nessa região sendo mera
expectativa de subsistência e rompimento do circulo-vicioso de
miséria que marca as famílias que ali habitam.
O
economista estoniano Ragnar Nurkse
afirma que “um país é pobre porque é pobre” quando se refere
ao que chamamos de circulo vicioso de pobreza dos países denominados
“emergentes”, retringindo sua análise ante a grande
complexidade econômica dos diversos países que se enquadram na
denominação “emergente”, caracterizando tanto os termos
técnicos quanto as ferramentas avaliativas de pobreza e
desenvolvimento como meros mecanismos a favor do sectarismo dos
órgãos avaliadores ligados aos países desenvolvidos
industrialmente e economicamente, afinal, desenvolvimento e
subdesenvolvimento são termos que ao analisarmos em toda a sua gama
de implicações são meramente semânticos haja visto que o
desenvolvimento que afeta diretamente os povos de um país, o social,
pode ser amplamente variável de região para região. Nurkse se
referindo aos antigos países de “terceiro escalão” onde muitas
vezes o Brasil foi classificado, limita e simplifica as causas pois
este mesmo Brasil nunca se caracterizou como país pobre, porém, com
má distribuição de desenvolvimento acarretando má distribuição
de riqueza e pouca ou nenhuma acumulação primitiva de capital, como
se referia Karl Marx à riqueza gerada na fonte primaria da produção,
impossibilitando a geração de riqueza e desenvolvimento de algumas
regiões brasileiras como o semiárido por exemplo, aqui a
complexidade econômica dos países fica evidente, e caracteriza a
miséria circular como um problema sistêmico e não crônico como
afirma Nurkse.
O
semiárido possui a maior porcentagem de brasileiros que vivem na
zona rural cerca de 40% segundo dados do IBGE do censo de 2010, que
demonstra a intrínseca relação das famílias que vivem nessa
região com atividades ligadas ao campo, essa valoração é
transmitida de geração à geração em um ciclo quase contínuo. A
terra devido a vários fatores explanados anteriormente é pouco
fértil e não agrega valor de mercado substancial ao que é
produzido pela baixa produtividade das lavouras, logo, as atividades
agrícolas exercidas são quase que exclusivamente para subsistência
e este fator conjugado aos intemperismos climáticos, manejo errado
do solo e dos recursos hídrico, deixa a sobrevivência dessas
pessoas em sério risco, tal fator aliado a baixa escolaridade, pouco
ou nenhum saneamento, condição de vida precárias com habitações
muitas vezes degradantes sem energia ou água tratada, já que
segundo a ANA (Agência Nacional de Águas):
“a
poluição de fontes hídricas disponíveis, conjugadas com uma
reduzida oferta da rede pública de abastecimento de água, afetam
severamente as condições de sobrevivência dessa população, que
muitas vezes não dispõe de meios suficientes para suprir demandas
mínimas de água”
Geram
um dos piores quadros de desenvolvimento do Brasil, afirma o IBGE que
“dos 16 milhões de extremamente pobres no Brasil, considerados
como aqueles com renda até R$ 70,00, quase 20% reside na zona rural
do semiárido brasileiro, representando mais de 3 milhões de
pessoas”.
Devido
a pouca renda dos povos do semiárido a qualidade de vida de seus
habitantes é muito baixa impelindo a um quadro em que geralmente
todos os componentes das famílias tem a responsabilidade de
trabalhar para assegurar sua alimentação, relegando às crianças
uma vida em que muitas vezes a evasão escolar em função do
trabalho é algo corriqueiro. As mulheres nessa situação possuem
expectativas de vida mais baixas ainda, pois com pouca instrução e
informação são vistas como braços fortes para a carpida diária e
como geradoras da vasta prole que servirá de mão de obra para o
trabalho duro do campo, nesse aspecto as desigualdades de gênero se
acentuam drasticamente como denuncia ONG Asa Brasil:
“Metade
da população no Semiárido, ou mais de dez milhões de pessoas, não
possui renda ou tem como única fonte de rendimento os benefícios
governamentais. Na sua maioria (59,5%) mulheres.
Os
que dispõem de até um salário mínimo mensal somam mais de cinco
milhões de pessoas (31,4%), sendo 47% mulheres. Enquanto isso,
apenas 5,5% dispõem de uma renda entre dois a cinco salários
mínimos, a maioria (67%) homens, e dos 0,15% com renda acima de 30
salários mínimos apenas 18% são mulheres.
O
Índice de Gini, que mede o nível de desigualdade a partir da renda,
está acima de 0,60 para mais de 32% dos municípios do Semiárido,
demonstrativo de uma elevada concentração da renda na região.
Quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade.
Essa
realidade metrificada e calculada pelas estatísticas é o reflexo de
milhões de vidas que lutam cotidianamente sem o acesso aos direitos
sociais e humanos mais fundamentais: aqui se inclui o direito à
água. Uma realidade que exige transformações urgentes.”
Essas
contradições cheias de agravantes sociais transferem aos filhos do
semiárido uma mera função de investimento paterno já que mais
braços significa desde cedo uma maior garantia de segurança
alimentar e quiçá financeira. Estes filhos adquirem prole que
geralmente se sujeitam às mesmas condições definindo assim o exato
contexto de circulo vicioso como uma
sucessão, geralmente ininterrupta, de acontecimentos que se repetem
e voltam sempre ao ponto de origem, colidindo sempre com o mesmos
obstáculos.
O
enfreamento dessa situação abrange politicas mais sérias do que a
mera falácia de “combate a seca” já que ninguém combate a seca
e sim seus efeitos na vida dos habitantes, o discurso embebido de tal
lógica relega à iniciativa governamental papel secundário na
responsabilidade de melhora na vida dos povos que ali vivem pois
prioriza o papel do clima como uma situação de fato imutável
promovendo uma imagem quixotesca na luta contra as intepéries,
todavia, os maiores problemas dessa região seriam facilmente
combatidos com atitudes simples e eficazes dos governos em todas as
esferas, de forma que as politicas que devem ser adotadas perpassa
logicamente por obras racionalizadas sobre as reais situações que
envolvem o semiarido, obras essas que nunca foram devidamente
estudadas em âmbito sitêmico relegando muitas vezes ao terceiro
setor (ONG's) medidas para amenizarem a situação já que as obras
para diminuírem os efeitos nocivos das secas prolongadas e a intensa
desigualdade social e de gênero, não atendem devidamente a
população do semiárido, como exemplifica a ONG Asa Brasil mais uma
vez:
“No
Brasil e no Semiárido, as secas sempre foram oportunidade fértil
para as oligarquias aumentarem suas posses de terras,
se locupletarem dos recursos públicos, conseguirem, com recursos
públicos, obras vultosas e caras para beneficiar suas propriedades e
de seus comparsas políticos, enraizarem seu poder político à custa
da miséria da população, exposta em filas à busca de gotas de
água e migalhas de alimentos. Aliado a este quadro, as secas
expulsam de suas terras e de seu torrão natal centenas e milhares de
cidadãos do Semiárido, que se tornam errantes na busca e na
esperança de melhores dias.”
Questiona-se
aqui medidas como a obra de transposição do Rio São Francisco como
de eficácia duvidosa e atendimento não menos duvidoso, já que a
água será obviamente comercializada para que sua distribuição
seja assegurada em âmbito corporativo e governamental, pois as
medidas de primeiro geralmente depende de aprovação do segundo, e
certamente os grandes latifundiários serão os verdadeiros
beneficiados da obra supracitada pois em análise à situação
agrária brasileira estes detém todo o poderio comercial, financeiro
e político que a terra pode oferecer, observa-se aqui o tamanho da
bancada ruralista na Assembléia Legislativa em que as
estimativas apontam uma variação entre 120 e 200 parlamentares
que defendem justamente esses interesses, fugindo do propósito
central de obras com esse calibre que é o atendimento amplo à
região do semiárido tornando-a uma obra faraônica dispensável já
que o problema dessa região não é propriamente falta de água e
sim má gestão de recursos hídricos.
Abre-se
um parêntese aqui para uma ressalva de que simples cisternas para
captar água da chuva resolveria o problema crônico de escassez
hídrica com a vantagem de não haver encargos financeiros para os
beneficiários após sua conclusão, mas devido à baixa renda dos
habitantes locais tais obras são inviáveis se custeadas de próprio
bolso, vale fazer um paralelo ainda que grosso modo, da tranposição
do Rio São Francisco com o caso do Mar de Aral no Uzbequistão
que teve suas águas drenadas pela antiga União Soviética para
canais que alimentavam plantações de algodão nas planícies
Uzbeques e hoje possui menos de um terço do tamanho original
acarretando fortes impactos na região tanto para as cidades que lhe
rodeavam quanto ao bioma que o mesmo sustentava, inerroga-se então
se uma obra com a dimensão e o gasto que dispende uma tranposição
soluciona o problema apresentado e suas consequências a longo prazo.
Outro
aspecto confluente e citado anteriormente diz respeito a atuação do
terceiro setor, ou seja ONG's, que são organizações privadas
atuando em interesses públicos em paralelo ao primeiro e segundo
setor (governos e corporações), geralmente sem fins lucrativos mas
que enfrentam criticas geralmente são bem direcionadas pela lógica
que a maioria desses organismos sociais difundem na constituição de
um novo sistema de opressão, pois uma ONG implica a
solidariedade do dominador para com o dominado, a exemplo disso
intriga o fato da quantidade de ONG's estrangeiras atuando em
território brasileiro, vejamos por exemplo o caso dos indígenas na
região Norte que são “ajudados” por cerca de 350 ONG's,
enquanto os povos do semiárido são beneficiados por exatamente
nenhuma, causa estranheza os interesses reais do terceiro setor como
meramente humanitários, validando uma observação de Maria da
Glória Gohn em seu livro “Mídia, Terceiro Setor e MST”:
“o
terceiro setor é um tipo de ‘Frankenstein': grande, heterogêneo,
construído de pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É
contraditório, pois inclui tanto entidades progressistas como
conservadoras. Abrange programas e projetos sociais que objetivam
tanto a emancipação dos setores populares e a construção de uma
sociedade mais justa, igualitária, com justiça social, como
programas meramente assistenciais, compensatórios, estruturados
segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela lógica de
mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania.”(Gohn,
2000: 60-74)
Segundo
dados da Abong (Organização em Defesa dos Direitos e Bens Comuns):
Em
2010, havia 290,7 mil Fundações Privadas e Associações sem Fins
Lucrativos (Fasfil) no Brasil, voltadas, predominantemente,
à religião (28,5%), associações patronais e
profissionais(15,5%) e ao desenvolvimento e defesa de direitos
(14,6%). As áreas de saúde, educação, pesquisa e
assistência social (políticas governamentais) totalizavam 54,1 mil
entidades (18,6%). As Fasfil concentravam-se na região Sudeste
(44,2%), Nordeste (22,9%) e Sul (21,5%), estando menos presentes no
Norte (4,9%) e Centro-Oeste (6,5%).
Números que demonstram que de todas as
entidades que atuam no Brasil, apenas 18% são voltadas à politicas
governamentais, que é o interessante em caráter emergencial para o
semiárido, e apenas 22% delas atuam em todo o Nordeste relegando a
essa parte do Brasil, uma situação de verdadeiro abandono por todos
os setores da sociedade em todas as esferas sociais e politicas,
dificultando de forma evidente que tal parte do Brasil seja de fato
englobada em todo ciclo de riqueza comercial e bem-estar social que
que o Brasil vem alçando na ultima década.
Programas
de transferência de renda são verdadeiras ferramentas de apoio às
famílias da seca já que se destinam ao alívio imediato da miséria,
contudo, pelo tamanho da problemática apresentada tal medida
demonstra-se insuficiente ante as politicas que podem e devem ser
feitas no combate ao circulo vicioso de miséria que se estende aos
habitantes do semiárido. Em análise mais precisa e a longo prazo,
essa região do Brasil com seu bioma único pode ser fonte de imensa
riqueza social e agrícola desde que as politicas que doravante se
queira implantar sejam bem feitas, considerando-se que
desenvolvimento social carrega consigo desenvolvimentos adjacentes,
pois influi em maior escolarização, maior renda, e maior
produtividade intelectual, o trabalho dos povos que ali habitam pode
contribuir e muito para um Brasil vindouro, nesse sentido já nos
alerta o filósofo Mario
Sérgio Cortella que o trabalho é fonte de vida enquanto o emprego é
fonte de renda, observada a enorme força cultural criativa do
Nordeste brasileiro essa região que hoje é assolada pela miséria e
pelo esquecimento pode ser fonte de uma enorme acumulação primitiva
de capital de origem intelectual, agrária e quiçá industrial.
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