quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Breve explanação da situação do semiárido brasileiro


Implicações econômicas e de gênero


Por: Elenilton da Cunha Galvão





“A luta contra a miséria e a fome tem dupla dimensão:
a emergencial e a estrutural. A articulação entre as duas dimensões
é complexa e cheia de astúcias. Atuar no emergencial
sem considerar o estrutural é contribuir para perpetuar a miséria.
Propor o estrutural sem atuar no emergencial é praticar o
cinismo de curto prazo em nome da filantropia de longo prazo”.
(Betinho)


"A bondade é o melhor status que o ser humano pode comprar"
"Recicle seus valores. Eles podem gerar lucros"
(Trechos do filme Quanto Vale ou é por Quilo?)



     Uma análise simplificada do semiárido brasileiro seria dimensionarmos sua extensão abrangido somente o Nordeste, ainda que este corresponda a cerca de 90% do mesmo, a região setentrional de Minas Gerais também divide o clima supracitado, cerca de 21 milhões de pessoas vivem no semiárido brasileiro e suas vidas são guiadas conforme os caprichos do clima local que é caracterizado pela baixa humidade e pouco volume pluviométrico, com precipitações irregulares que marcam essa região por secas constantes que desde a chegada dos portugueses aos dias atuais somam cerca de 72 grandes estiagens conforme registros da ONG Asa Brasil. De vegetação característica, a caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro e bastante heterogêneo é rica em biodiversidade mas possui solo “raso”, ou seja, se escavarmos encontraremos rocha a poucos metros de profundidade dificultando o armazenamento de água e facilitando o escoamento da mesma que se transforma em pequenos córregos e açudes que secam rapidamente.



     Erigidos nessa região há cerca de 1.134 municípios de nove estados brasileiros, em uma área de aproximadamente 969 mil Km2 , o que representa cerca de 20% dos municípios e 11% do território brasileiros. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a economia do semiárido é basicamente de pecuária extensiva, atividades agropastoris, e agricultura familiar de baixo rendimento que entra em acentuado declive em períodos de seca causando muitas vezes a falência das lavouras e dos rebanhos. Devido ao manejo incorreto do solo em muitas regiões os processos erosivos estão se intensificando e constituem os indícios mais marcantes do processo de desertificação da caatinga agravando exponencialmente a situação das comunidades do semiárido, em artigo da Embrapa “A questão da degradação torna-se mais complexa quando se diferenciam os vários tipos de impactos que podem ocorrer em virtude das atividades antrópicas no uso inadequado dos recursos naturais”, esses fatores aliados ao baixo investimento governamental acarretam em processos migratórios dos povos que ali habitam para os grandes centros ou outras regiões, logo, ao contrário da maioria dos processos migratórios brasileiros que são marcadamente econômicos, os famosos êxodos rurais, estes por sua vez dão-se pela impossibilidade de sobrevivência nessa região sendo mera expectativa de subsistência e rompimento do circulo-vicioso de miséria que marca as famílias que ali habitam.

     O economista estoniano Ragnar Nurkse afirma que “um país é pobre porque é pobre” quando se refere ao que chamamos de circulo vicioso de pobreza dos países denominados “emergentes”, retringindo sua análise ante a grande complexidade econômica dos diversos países que se enquadram na denominação “emergente”, caracterizando tanto os termos técnicos quanto as ferramentas avaliativas de pobreza e desenvolvimento como meros mecanismos a favor do sectarismo dos órgãos avaliadores ligados aos países desenvolvidos industrialmente e economicamente, afinal, desenvolvimento e subdesenvolvimento são termos que ao analisarmos em toda a sua gama de implicações são meramente semânticos haja visto que o desenvolvimento que afeta diretamente os povos de um país, o social, pode ser amplamente variável de região para região. Nurkse se referindo aos antigos países de “terceiro escalão” onde muitas vezes o Brasil foi classificado, limita e simplifica as causas pois este mesmo Brasil nunca se caracterizou como país pobre, porém, com má distribuição de desenvolvimento acarretando má distribuição de riqueza e pouca ou nenhuma acumulação primitiva de capital, como se referia Karl Marx à riqueza gerada na fonte primaria da produção, impossibilitando a geração de riqueza e desenvolvimento de algumas regiões brasileiras como o semiárido por exemplo, aqui a complexidade econômica dos países fica evidente, e caracteriza a miséria circular como um problema sistêmico e não crônico como afirma Nurkse.

      O semiárido possui a maior porcentagem de brasileiros que vivem na zona rural cerca de 40% segundo dados do IBGE do censo de 2010, que demonstra a intrínseca relação das famílias que vivem nessa região com atividades ligadas ao campo, essa valoração é transmitida de geração à geração em um ciclo quase contínuo. A terra devido a vários fatores explanados anteriormente é pouco fértil e não agrega valor de mercado substancial ao que é produzido pela baixa produtividade das lavouras, logo, as atividades agrícolas exercidas são quase que exclusivamente para subsistência e este fator conjugado aos intemperismos climáticos, manejo errado do solo e dos recursos hídrico, deixa a sobrevivência dessas pessoas em sério risco, tal fator aliado a baixa escolaridade, pouco ou nenhum saneamento, condição de vida precárias com habitações muitas vezes degradantes sem energia ou água tratada, já que segundo a ANA (Agência Nacional de Águas):

a poluição de fontes hídricas disponíveis, conjugadas com uma reduzida oferta da rede pública de abastecimento de água, afetam severamente as condições de sobrevivência dessa população, que muitas vezes não dispõe de meios suficientes para suprir demandas mínimas de água”

     Geram um dos piores quadros de desenvolvimento do Brasil, afirma o IBGE que “dos 16 milhões de extremamente pobres no Brasil, considerados como aqueles com renda até R$ 70,00, quase 20% reside na zona rural do semiárido brasileiro, representando mais de 3 milhões de pessoas”.


     Devido a pouca renda dos povos do semiárido a qualidade de vida de seus habitantes é muito baixa impelindo a um quadro em que geralmente todos os componentes das famílias tem a responsabilidade de trabalhar para assegurar sua alimentação, relegando às crianças uma vida em que muitas vezes a evasão escolar em função do trabalho é algo corriqueiro. As mulheres nessa situação possuem expectativas de vida mais baixas ainda, pois com pouca instrução e informação são vistas como braços fortes para a carpida diária e como geradoras da vasta prole que servirá de mão de obra para o trabalho duro do campo, nesse aspecto as desigualdades de gênero se acentuam drasticamente como denuncia ONG Asa Brasil:

Metade da população no Semiárido, ou mais de dez milhões de pessoas, não possui renda ou tem como única fonte de rendimento os benefícios governamentais. Na sua maioria (59,5%) mulheres. 
Os que dispõem de até um salário mínimo mensal somam mais de cinco milhões de pessoas (31,4%), sendo 47% mulheres. Enquanto isso, apenas 5,5% dispõem de uma renda entre dois a cinco salários mínimos, a maioria (67%) homens, e dos 0,15% com renda acima de 30 salários mínimos apenas 18% são mulheres.
O Índice de Gini, que mede o nível de desigualdade a partir da renda, está acima de 0,60 para mais de 32% dos municípios do Semiárido, demonstrativo de uma elevada concentração da renda na região. Quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade. 
Essa realidade metrificada e calculada pelas estatísticas é o reflexo de milhões de vidas que lutam cotidianamente sem o acesso aos direitos sociais e humanos mais fundamentais: aqui se inclui o direito à água. Uma realidade que exige transformações urgentes.”

     Essas contradições cheias de agravantes sociais transferem aos filhos do semiárido uma mera função de investimento paterno já que mais braços significa desde cedo uma maior garantia de segurança alimentar e quiçá financeira. Estes filhos adquirem prole que geralmente se sujeitam às mesmas condições definindo assim o exato contexto de circulo vicioso como uma sucessão, geralmente ininterrupta, de acontecimentos que se repetem e voltam sempre ao ponto de origem, colidindo sempre com o mesmos obstáculos.

     O enfreamento dessa situação abrange politicas mais sérias do que a mera falácia de “combate a seca” já que ninguém combate a seca e sim seus efeitos na vida dos habitantes, o discurso embebido de tal lógica relega à iniciativa governamental papel secundário na responsabilidade de melhora na vida dos povos que ali vivem pois prioriza o papel do clima como uma situação de fato imutável promovendo uma imagem quixotesca na luta contra as intepéries, todavia, os maiores problemas dessa região seriam facilmente combatidos com atitudes simples e eficazes dos governos em todas as esferas, de forma que as politicas que devem ser adotadas perpassa logicamente por obras racionalizadas sobre as reais situações que envolvem o semiarido, obras essas que nunca foram devidamente estudadas em âmbito sitêmico relegando muitas vezes ao terceiro setor (ONG's) medidas para amenizarem a situação já que as obras para diminuírem os efeitos nocivos das secas prolongadas e a intensa desigualdade social e de gênero, não atendem devidamente a população do semiárido, como exemplifica a ONG Asa Brasil mais uma vez:

No Brasil e no Semiárido, as secas sempre foram oportunidade fértil para as oligarquias aumentarem suas posses de terras, se locupletarem dos recursos públicos, conseguirem, com recursos públicos, obras vultosas e caras para beneficiar suas propriedades e de seus comparsas políticos, enraizarem seu poder político à custa da miséria da população, exposta em filas à busca de gotas de água e migalhas de alimentos. Aliado a este quadro, as secas expulsam de suas terras e de seu torrão natal centenas e milhares de cidadãos do Semiárido, que se tornam errantes na busca e na esperança de melhores dias.”


     Questiona-se aqui medidas como a obra de transposição do Rio São Francisco como de eficácia duvidosa e atendimento não menos duvidoso, já que a água será obviamente comercializada para que sua distribuição seja assegurada em âmbito corporativo e governamental, pois as medidas de primeiro geralmente depende de aprovação do segundo, e certamente os grandes latifundiários serão os verdadeiros beneficiados da obra supracitada pois em análise à situação agrária brasileira estes detém todo o poderio comercial, financeiro e político que a terra pode oferecer, observa-se aqui o tamanho da bancada ruralista na Assembléia Legislativa em que as estimativas apontam uma variação entre 120 e 200 parlamentares que defendem justamente esses interesses, fugindo do propósito central de obras com esse calibre que é o atendimento amplo à região do semiárido tornando-a uma obra faraônica dispensável já que o problema dessa região não é propriamente falta de água e sim má gestão de recursos hídricos.

     Abre-se um parêntese aqui para uma ressalva de que simples cisternas para captar água da chuva resolveria o problema crônico de escassez hídrica com a vantagem de não haver encargos financeiros para os beneficiários após sua conclusão, mas devido à baixa renda dos habitantes locais tais obras são inviáveis se custeadas de próprio bolso, vale fazer um paralelo ainda que grosso modo, da tranposição do Rio São Francisco com o caso do Mar de Aral no Uzbequistão que teve suas águas drenadas pela antiga União Soviética para canais que alimentavam plantações de algodão nas planícies Uzbeques e hoje possui menos de um terço do tamanho original acarretando fortes impactos na região tanto para as cidades que lhe rodeavam quanto ao bioma que o mesmo sustentava, inerroga-se então se uma obra com a dimensão e o gasto que dispende uma tranposição soluciona o problema apresentado e suas consequências a longo prazo.

     Outro aspecto confluente e citado anteriormente diz respeito a atuação do terceiro setor, ou seja ONG's, que são organizações privadas atuando em interesses públicos em paralelo ao primeiro e segundo setor (governos e corporações), geralmente sem fins lucrativos mas que enfrentam criticas geralmente são bem direcionadas pela lógica que a maioria desses organismos sociais difundem na constituição de um novo sistema de opressão, pois uma ONG implica a solidariedade do dominador para com o dominado, a exemplo disso intriga o fato da quantidade de ONG's estrangeiras atuando em território brasileiro, vejamos por exemplo o caso dos indígenas na região Norte que são “ajudados” por cerca de 350 ONG's, enquanto os povos do semiárido são beneficiados por exatamente nenhuma, causa estranheza os interesses reais do terceiro setor como meramente humanitários, validando uma observação de Maria da Glória Gohn em seu livro “Mídia, Terceiro Setor e MST”:

o terceiro setor é um tipo de ‘Frankenstein': grande, heterogêneo, construído de pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto entidades progressistas como conservadoras. Abrange programas e projetos sociais que objetivam tanto a emancipação dos setores populares e a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, com justiça social, como programas meramente assistenciais, compensatórios, estruturados segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela lógica de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania.”(Gohn, 2000: 60-74)

     Segundo dados da Abong (Organização em Defesa dos Direitos e Bens Comuns):


Em 2010, havia 290,7 mil Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil) no Brasil, voltadas, predominantemente, à religião (28,5%), associações patronais e profissionais(15,5%) e ao desenvolvimento e defesa de direitos (14,6%). As áreas de saúde, educação, pesquisa e assistência social (políticas governamentais) totalizavam 54,1 mil entidades (18,6%). As Fasfil concentravam-se na região Sudeste (44,2%), Nordeste (22,9%) e Sul (21,5%), estando menos presentes no Norte (4,9%) e Centro-Oeste (6,5%). 

     Números que demonstram que de todas as entidades que atuam no Brasil, apenas 18% são voltadas à politicas governamentais, que é o interessante em caráter emergencial para o semiárido, e apenas 22% delas atuam em todo o Nordeste relegando a essa parte do Brasil, uma situação de verdadeiro abandono por todos os setores da sociedade em todas as esferas sociais e politicas, dificultando de forma evidente que tal parte do Brasil seja de fato englobada em todo ciclo de riqueza comercial e bem-estar social que que o Brasil vem alçando na ultima década.

     Programas de transferência de renda são verdadeiras ferramentas de apoio às famílias da seca já que se destinam ao alívio imediato da miséria, contudo, pelo tamanho da problemática apresentada tal medida demonstra-se insuficiente ante as politicas que podem e devem ser feitas no combate ao circulo vicioso de miséria que se estende aos habitantes do semiárido. Em análise mais precisa e a longo prazo, essa região do Brasil com seu bioma único pode ser fonte de imensa riqueza social e agrícola desde que as politicas que doravante se queira implantar sejam bem feitas, considerando-se que desenvolvimento social carrega consigo desenvolvimentos adjacentes, pois influi em maior escolarização, maior renda, e maior produtividade intelectual, o trabalho dos povos que ali habitam pode contribuir e muito para um Brasil vindouro, nesse sentido já nos alerta o filósofo Mario Sérgio Cortella que o trabalho é fonte de vida enquanto o emprego é fonte de renda, observada a enorme força cultural criativa do Nordeste brasileiro essa região que hoje é assolada pela miséria e pelo esquecimento pode ser fonte de uma enorme acumulação primitiva de capital de origem intelectual, agrária e quiçá industrial.

















Bibliografia:

Angelotti, Francislene; Cunha, Tony Jarbas F.; Drumond, Marcos ; Sá, Iêdo B.; Teixeira. Antonio Heriberto C.; Desertificação no Semiárido brasileiro. Fortaleza, Agosto de 2010.

Arsky, Igor da C.; Santana, Vitor L.; Soares, Carlos Cleber S.; Democratização do acesso à água e desenvolvimento local: a experiência do Programa Cisternas no semiárido brasileiro. Anais do I circuito acadêmico, Brasilia 2011.

Articulação do Semi-Árido Brasileiro, Declaração sobre o atual momento da seca no semiárido. Recife maio de 2012.

Cardoso, Graziela G. O Círculo Vicioso da Pobreza e a Causação Circular Cumulativa: Retomando as Contribuições de Nurkse e Myrdal. Temas de Economia Aplicada., São Paulo, ago. de 2012.

Gohn, Maria G. (2000). Mídia, terceiro setor e MST: impacto sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis: Vozes.

Souza, Celiane Dias de; Ferreira, Eliane; Crisóstomo, Danilo; Santos, Angelita Maria dos; Santiago, Alvany M. S.; Desigualdades no semi-árido nordestino: o trabalho da Associação das Mulheres Rendeiras. Petrolina, s/d.


Referências Eletrônicas:

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Clima_semi%C3%A1rido , acessado em 26 de Agosto de 2013.
http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/desenvolvimentoterritorial/semiarido , acessado em 27 de agosto de 2013.
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/2309/1/2006_Roberto%20Marinho%20Alves%20da%20Silva.pdf , acessado em 28 de agosto de 2013.
http://repositorio.unb.br/handle/10482/2309. Acessado em 28 de agosto de 2013.
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_MENU=105, Acessado em 26 de agosto de 2013.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bancada_ruralista, acessado em 27 de Agosto de 2013.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1519-549X2009000100010&script=sci_arttext, acessado em 26 de Agosto de 2013.
http://educacaoecia.blogspot.com.br/2005/05/filme-quanto-vale-ou-por-quilo.html, acessado em 27 de agosto de 2013.
http://revistamirante.wordpress.com/2013/02/28/ongs-sobram-na-amazonia-e-o-nordeste/
http://www.mds.gov.br/ . Acessado em 27 de Agosto de 2013.