Por Amom R. Morais
Lançado
em 2005, tendo como diretor Paul Weitz, o filme “Em Boa Companhia” é uma
comédia com um pano de fundo dramático, podendo ser classificado como uma
“dramédia”, gênero em moda nos últimos tempos em Hollywood e em muitas séries
atuais. A interpretação de um filme é sempre relativa e sua conclusão em
termos de significação termina no espectador. No entanto, alguns críticos de
cinema afirmam que para se chegar a uma verdade de um filme de terror é necessário
retirarmos dele o núcleo e os elementos de terror e assim chegaremos ao
verdadeiro conflito subjacente. Nesse sentido, eu estenderia essa fórmula para
os todos os gêneros, se desconsiderarmos o núcleo que caracteriza o filme
enquanto gênero, ficamos com seus antagonismos reias. No nosso caso aqui,
abandonaríamos os aspectos cômicos e dramáticos hollywoodianos contidos “Em Boa
Companhia”, que apesar do final reconciliador, possui uma sub- narrativa correspondente
à contradições de processos históricos reais vivenciadas por muitos de nós.
A história se inicia em um conflito dentro de
uma corporação da área de produtos esportivos. Dan é um personagem que ocupa um
cargo de alta responsabilidade no setor de vendas da empresa há vários anos. Em
função da recente venda da organização para um mega rico, Dan é obrigado a
ceder o seu posto de trabalho para um outro profissional, Carter, jovem
inexperiente que possui a metade da idade de Dan. É evidente o descontentamento
de Dan e sua dificuldade no desenrolar da história em lidar com seu novo chefe
com um perfil muito diferente. Seu novo chefe é Carter, inexperiente na área, mas é ávido por
resultados com métodos de trabalhos inovadores. Ao longo do envolvimento de
ambos na prática profissional, suas vidas pessoais se imbricam de modo que
Carter acaba por se envolver com a filha de Dan, tencionando ainda mais as
relações dentro e fora da empresa.
A partir dessa breve e simples sinopse
já nos é possível imaginar a riqueza de elementos possíveis de análise e
reflexão sob uma perspectiva de estudo das instituições e das mudanças no mundo
do trabalho. Podemos observar a principio um conflito dentro de um interior de
uma organização que pode e deve ser pensado dentro de um contexto da lógica
econômica macrossocial que estabelece as regras do jogo das relações
empresarias. Uma carreira e toda uma vida pessoal que se construiu ao longo de
muitos anos foi tomada de assalto por uma contingência, mas que se faz
necessária no mundo lucrativo das corporações, a saber, a venda inesperada da
propriedade/empresa, o que acarreta mudanças bruscas na organização dos cargos.
Assim, Dan é surpreendido por sua substituição, que aconteceu, apesar da sua
enorme experiência na área. Isso é apenas uma das consequências trágicas a
nível psíquico para muitos, das mudanças no modo de produção e reprodução do
capital em sua fase de acumulação flexível. Isso significa uma nova lógica das
relações entre empresas e dentro da empresa que consequentemente muda as
condições e formas do trabalho e também nos obriga a repensar a questão da
carreira, uma vez que o trabalho sofre transformação, negado pelo capital e se
torna cada fez mais instável, sobretudo, no mundo da propriedade privada, a
insuficiência da experiência de Dan para a permanência no cargo ilustra um
pouco essa nova condição do trabalho no mundo contemporâneo.
Um pouco do esboço desse cenário que
a tensão inicial do filme ilustra nos serve para articular duas dimensões que
aparentemente são opostas e que não se interconectam, qual seja, a dimensão
universal da vida profissional vinculada às estruturas sócio econômicas e a
dimensão da vida pessoal composta de afetos familiares e conflitos psíquicos,
ou seja, o lado singular do ser social. Isto quer dizer que o funcionamento das
engrenagens objetivas exerce um impacto determinante na constituição do
sujeito, tendo que entendê-lo a partir das transformações no mundo da totalidade
social. Ao mesmo tempo a dialética nos ensina que essa mesma totalidade da
ordem simbólica e institucional não é reificada e estanque, mas ao contrário é
puro devir e formada historicamente por sujeitos ativos que produzem suas
próprias instituições para o funcionamento das relações sociais.
Essas instituições são o foco do nosso
presente texto que se propõe identificar como elas atravessam a vida dos
indivíduos em todos os seus aspectos e em suas atividades. As instituições são
instancias de saberes e discursos e práticas que permitem a todo tempo recompor
e regular as relações sociais, organizar espaços e recortar limites. (Pereira,
2007). Sendo assim, cada momento histórico e social irá configurar de um modo
diferente suas instituições que vão desde o Estado como uma grande instituição
até à família, igreja, escola, o Direito, as relações de trabalho.
No que diz respeito ainda às
particularidade individuais, é significativo aqui propor a explicação da
passagem do indivíduo a sujeito para se poder melhor compreender as formações
subjetivas. As instituições, quando há uma prevalência do instituído, “capturam
os processos de subjetivação singulares impondo seu modelo através da
centralidade do poder, do dinheiro, do prestígio, da disseminação da culpa”.
(Pereira, 2007, pag.7). Talvez aqui, poderíamos complementar com uma ideia
althusseriana, de que o indivíduo é interpelado como sujeito pela ideologia (Althusser),
essa só pode ser entendida na prática através da ação das instituições ou dos
Aparelhos ideológicos de estado no caso família, trabalho, Direito etc. que nos
submetem enquanto sujeitos e nos faz reconhecermos nela, pela lógica da
identificação. Assim nasce a subjetividade do ser social a partir de categorias
fundantes como trabalho, linguagem e desejo, criando as necessidades e
possibilidades subjetivas e objetivas de novas outras instituições.
Tendo
como base o que foi dito acima o que fica claro pra nós, portanto, é a
universalidade dentro da singularidade e vice versa, bem como dizia Lukács, em
sua Para uma ontologia do ser social (2012), não existe singularidade fora da
base genérica dentro da universalidade. Quer dizer, todas as nossas
peculiaridades da vida particular estão conectadas, na maioria das vezes
inconscientemente, com o movimento das instituições ao nosso redor. A análise
institucional como ferramenta teórica nos permite compreender as determinações
ocultas dos grupos, tendo como protagonista o próprio grupo.
Voltando ao filme apoiados nesse
aporte teórico, podemos pensar nos conflitos para além dos limites do espaço
empresarial. Sem dúvida nenhuma, este espaço empresarial foi o cenário de
fundamental importância para moldar os valores de Dan ao longo da sua carreira.
Dan é um homem vinculado a traços valorativos mais tradicionais como
fidelidade, confiança, segurança, autoridade. Ele tem uma relação com sua
família de modo muito afetuoso, mas mediados por valores ditos acima, da mesma
forma sua relação profissional também é mediada por valores fetiches
correspondentes à empresa tipicamente burocrática que tinha antigamente
princípios e políticas atreladas a uma valorização da obediência à hierarquia,
autoridade simbólica e poder centralizado. Em contextos assim se gera mais
segurança pela estrutura rígida da organização. Uma vez confrontado pela quebra
de tais configurações organizacionais, Dan se vê descentralizado, e ao mesmo
tempo traído a partir do ponto de vista das suas crenças, moldadas ao longo de
sua carreira, ao perceber o novo discurso predominante na lógica empresarial e
que se estende para a vida em todos seus aspectos, inclusive os mais íntimos.
É
desse modo que se pode fazer um paralelo da condição de ruptura no contexto do
trabalho com a relação de Dan com sua família. Ele se vê impelido a investir
mais atenção e apoio financeiro às pessoas de sua casa, sua mulher está grávida
e sua filha mais velha resolve estudar fora, o que o motiva a realizar mais uma
hipoteca de modo a garantir ainda mais
segurança financeira à família. Observa-se a dedicação e a fidelidade a um
valor e a um fim. Só que Dan nem sempre poderá ter o retorno esperado segundo seus
critérios valorativos tradicionais. É aí que entra um elemento novo, Carter que
ao se envolver com a filha de Dan (como não se envolver com Scarlet Johansson?)
provoca uma tensão tanto na relação de ambos que desperta um conflito entre Dan
e sua filha, conflito esse, que é expressão de, uma certa, quebra das
expectativas de Dan e de sua confiança em relação à filha, quebra da autoridade
simbólica do pai, e essa frustração foi intensificada por seu candidato a
genro, a pessoa que mais o irrita. Imagino que a sensação de Dan é de traição.
Carter é o elemento simbólico de negação que introduz uma diferença, o novo,
ele representa a ruptura de um paradigma no mundo das organizações e da
economia e também provoca a manifestação de um conflito na família de Dan. Ele
agora deve se esforçar para aceitar novas situações, começando com a ideia de a
filha morar fora, exemplificado pela cena que ele acompanha sua filha no
alojamento e observa espantado para uma imagem de uma folha de Marijuana na
parede. Observa-se, portanto, os conflitos internos a Dan paralelamente às
transformações de instituições importantes, a saber, as relações de trabalho e
a família.
No caso de Carter, cabe sugestões de
análise das mais diversas, no entanto não há muito tempo para isso. Mas é
importante salientar que para além de Carter representar o que há de novo no
mercado, um típico Yuppie, ele expressa limitações e insuficiências no que diz
respeito à adaptação de conjuntura e dos novos paradigmas. Por mais que ele
seja inovador em suas ideias de publicidade e estratégias de mercado ele se vê
confrontado do ponto de vista ético com as demissões em massa, consequência da “empresa
enxuta”. Outro aspecto é sua constante
projeção afetiva em direção a Dan. Há uma identificação de respeito tipicamente
paterna de Carter a Dan. Isso é provável se levarmos em conta sua falta de
vínculo com sua família de origem e sua falta de vínculo com sua recém esposa,
casamento que durou sete meses. A sua vida é marcada por instabilidade, e
apesar de seu personagem personificar um modelo pós-moderno, liberal, o
elemento do novo, o efêmero e a carência, ele também é um sujeito descentrado,
em conflito, deslocado nessa nova configuração social e de mercado reificada.
Assim,
Dan e Carter, cada um a seu modo, expressam as limitações, conflitos, impasses e
o vazio do ser aí na contemporaneidade. A lição que podemos tirar disso, e a
sociopsicánalise indica uma antagonismo no mesmo sentido, é que “paira sobre
nós uma estrutura perversa, cujo poder alojou-se dentro dos tecidos
psico-libidinais, sócio-culturais, e econômico-políticos, tornando, assim,
possível um elevado nível de controle imperativo sobre os seres humanos e,
consequentemente, uma forma social anômica” (Pereira, 2007, pag.11). Essa é
forma da sociedade moderna e suas versões “pós” combinando vários processos
sociais contraditórios provocando subjetivações cada vez mais deslocadas e estranhadas.
Referências:
Althusser,
Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado.
Lukács,
Georg. Para uma Ontologia do Ser Social. Boitempo.
2012.
Pereira,
Willian Cesar Castilho. Movimento
institucionalista: principais abordagens. Estudos e pesquisa em psicologia,
UERJ, RJ, ano 7, N.1,1ºsemestre de 2007.