Por: Eli Magalhães
QUE FAZER?
Problemas candentes do nosso movimento
V. I. Lênin
Edições Avante; 2ª Ed. -
Introdução
O presente trabalho não é mais do que a tentativa de
organizar uma síntese sistemática dos pontos que julgamos
relevantes na leitura da obra Que Fazer? do revolucionário russo
Vladimir Lênin. Longe de representar um estudo de fôlego que busque
investigar os nexos mais profundos do texto em questão, pretendemos
aqui, tão somente, organizar as idéias formuladas a partir de sua
leitura. A consulta ao texto original queda, portanto, indispensável
para a resolução dos reais problemas acerca dos quais ele se
debruça e em relação aos quais pode oferecer, ainda na atualidade
(quase 110 anos depois de ter sido escrito), aclareamentos dos quais
a esquerda socialista não se pode furtar.
Esta obrigatoriedade do texto leniniano é,
provavelmente, o sintoma mais representativo de que aqui se trata de
um clássico da teoria política do marxismo. Justamente por isto é
impossível entrar em desacordo com Atilio Boron quando afirma que a
incontornável politicidade da obra de Lênin faz com que a postura a
seu favor ou contra não seja “uma questão acadêmica, mas antes
um acto de vontade política”1. Assim, o debate aqui proposto
jamais poderia pretender-se suficiente e a mera leitura de uma obra
como tal implica, então, uma série de preocupações inolvidáveis.
A obra de Lênin, ao ser marcada por esta sua
politicidade, é, em inúmeros de seus contornos, mérito de um
esforço teórico-militante contínuo. Isto é mais uma qualidade do
que uma limitação, já que a capacidade de interpretação da
realidade e posterior síntese da mesma em escritos propagandísticos
é uma demanda fundamental para um movimento socialista que se
pretenda consequente. No entanto, não é possível deixar de
preocupar-se com a diferenciação que, nas obras do referido autor,
deve-se perfazer entre os nexos particulares e universais de seus
escritos. O fato de escrever sempre levado aos fins de responder a um
determinado contexto político o qual presenciava faz com que
aspectos dos textos de Lênin sejam indubitavelmente datados,
característica da qual o próprio não pretendia desvencilhar-se.
Portanto, é um dos objetivos deste pequeno estudo a
apreensão, por ora, apenas dos nexos mais abrangentes da presente
obra leniniana, bem como de oferecer propostas de interpretação
para certos apontamentos por ela sugeridos. Nesta senda, teve-se de
deixar de lado um estudo mais aprofundado acerca de cada uma das
polêmicas nas quais o autor se envolve, levando-se em conta, tão
somente, seus nexos mais gerais, ou seja: a luta contra o
revisionismo e o trade-unionismo no seio do movimento socialista (na
época da obra, social-democrata), aliás público maior do texto ora
estudado.
Objetivos gerais de Lênin
Que Fazer? foi escrito entre o fim de 1901 e início de
1902. O contexto russo deste momento, principal, mas não única,
preocupação da obra, apontava para um importante levante das
contradições políticas existentes na sociedade autocrática de
então. A Primavera de 1901 é marcada por uma série de
movimentações de massas na Rússia, que envolviam de estudantes
rebelados a movimentos grevistas diversos com especial ascenso da
politização da classe operária. A preocupação de Lênin, no
entanto, estava em fazer com que o Partido Operário Social-Democrata
Russo (POSDR, fundado em 1898) colocasse-se a altura das tarefas que
uma tal conjuntura política punha a sua frente. Para ele, por
inúmeras questões que buscou explorar, o partido (e, em certos
casos, é ainda melhor dizer o “movimento” social-democrata) não
tinha, ainda, evoluído para o estágio superior que o novo clima de
mobilização demandava. Pelo contrário, havia mesmo tendências que
se movimentavam no sentido de conservar o estágio embrionário que a
Social-Democracia russa possuía.
Neste sentido, Lênin elege como os objetivos
específicos de seu texto, tendo sempre como interlocutora a
Social-Democracia Russa: “o carátcter e o conteúdo principal da
nossa agitação política; as nossas tarefas de organização; o
plano para a criação, simultaneamente e por diversos lados, de uma
organização de combate de toda a Rússia”2.
Nota-se desde o prefácio da obra, portanto, que a mesma
possui o claro fim de preparar o movimento socialista de então para
os desafios aos quais teria de responder. Significa dizer que, para o
autor, a questão organizativa dos socialistas não representaria
mero detalhe, mas um ponto de reflexão estratégica para a superação
do regime o qual combatiam. Não é exagero dizer, então, que a
questão que estava posta era, qual tipo de ferramenta pode e deve
ser utilizada pelo movimento da Social-Democracia revolucionária
para a definitiva tomada de poder na Rússia? As respostas, como a
leitura pode demonstrar, são oferecidas ao longo da brochura.
A ortodoxia teórica e autonomia revolucionária
Durante o primeiro capítulo o autor preocupa-se com o
que, ao nosso ver, representa a delimitação de fronteiras da
organização política revolucionária. Fronteiras estas, na
verdade, que exprimem o ancestral embate no campo político da
esquerda entre os partidários da reforma e os da revolução. Neste
sentido, inclusive, o texto de Lênin permite-se, durante não poucas
passagens, transbordar-se para além das fronteiras russas tratando
de polêmicas relacionadas ao movimento social-democrata
internacional, com particular acento para o bernsteinianismo.
O embate destas primeira formulações apresentadas na
brochura dá-se, de um lado, na polêmica acerca da liberdade de
crítica dentro do partido Social-Democrata, por outro, na
demonstração da importância da clareza teórica para o movimento.
Neste meio tempo, algumas considerações acerca das alianças
políticas são formuladas que buscaremos explorar.
Durante o período em que é escrito o Que Fazer? havia
se tornado especialmente atraente a palavra de ordem da “liberdade
de crítica”. Reclamariam algumas tendências do movimento
social-democrata a necessidade de manter aberto o quadro geral de
debate interno de tal corrente política. Lênin busca demonstrar que
a tal liberdade aqui reivindicada, na verdade, é a abertura de
portas para a perda de claras delimitações do programa e da teoria
revolucionários.
Os defensores da liberdade de crítica, assim, são, na
verdade, defensores de interpretações que se colocavam em
contraposição ao que eles próprios denominavam de “marxismo
velho, dogmático”. Lênin faz questão de afirmar que esta questão
estava, naquele específico momento, em voga não apenas na Rússia,
mas em toda a Social-Democracia internacional3.
É assim que o autor busca a definição da tal
liberdade de crítica:
“Aqueles que não fecham deliberadamente os olhos não
podem deixar de ver que a nova tendência 'crítica' surgida no seio
do socialismo não é mais do que uma nova variedade do oportunismo.
Se não julgarmos as pessoas pelo brilhante uniforme com que elas
próprias se vestiram, nem pelo título pomposo que a si próprias se
deram, mas segundo a sua maneira de agir e as ideias que de facto
propagam, tornar-se-á claro que a 'liberdade de crítica' é a
liberdade da tendência oportunista no seio da social-democracia, a
liberdade de transformar esta última num partido democrático de
reformas, a liberdade de introduzir no socialismo ideias burguesas e
elementos burgueses”.4
O que busca, neste momento, o autor, é demonstrar como
o debate entre a busca pela conquista de reformas sociais que,
segundo pensavam seus defensores, deveriam levar ao socialismo,
buscando, em suma, a colaboração entre as classes, e a via da
tomada do poder revolucionário pelo proletariado não era,
absolutamente, um debate interno à Social-Democracia. Era, na
verdade, um debate entre o genuíno movimento socialista
revolucionário e os elementos da consciência e da política
burguesas presentes em seu interior. Ou seja, era um embate não
entre dois pólos de um mesmo campo político, mas uma expressão da
irreconciliável contradição de classes a qual manifestava-se no
seio do próprio movimento contestatório do regime. E neste sentido
Lênin é categórico em sua defesa de que estes elementos que
expressam, na verdade, a postura das classes dirigentes deveriam,
indubitavelmente, serem filtrados do movimento socialista. Isto
independeria, inclusive, da força numérica que restaria ao
movimento revolucionário.
“Pequeno grupo compacto, seguimos por um caminho
escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados de
inimigos por todos os lados e temos de marchar quase sempre debaixo
do seu fogo. Unimo-nos em virtude de uma decisão livremente tomada,
precisamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano
vizinho, cujos habitantes, desde o início, nos censuram por nos
termos separado num grupo à parte e por termos escolhido o caminho
da luta e não o da conciliação. E eis que alguns de nós começam
a gritar: 'Vamos para o pântano!' E quando procuramos envergonhá-los
replicam: “Que gente atrasada sois! Como é que não tendes
vergonha de nos negar a liberdade de vos convidar a seguir um caminho
melhor!' Oh!, sim, senhores, sois livres não só de nos convidar,
mas também de ir para onde melhor vos parecer, até para o pântano;
até pensamos que o vosso verdadeiro lugar é precisamente o pântano
e estamos dispostos a ajudar-vos, na medida de nossas forças, a
mudar-vos para lá. Mas nesse caso largai-nos a mão, não vos
agarreis a nós e não mancheis a grande palavra liberdade, porque
nós também somos 'livres' para ir para onde melhor nos parecer,
livres para combater não só o pântano como aqueles que se desviam
para o pântano!”5
Na opinião de Lênin esta tendência, na Rússia,
inicia-se da própria absorção do marxismo naquele país. No
nascedouro da reflexão marxista no território russo surgem, desde
logo, tendências marcadas pela moderação a qual aplicam a teoria
revolucionária. Dentre elas é utilizado o exemplo do
“Marxismo-Legal”.
Tal corrente de pensamento tem sua origem histórica da
década de 1890. Sua característica principal foi ter adotado a
teoria de Marx de forma mecanicista o que a levaria a apagar dela
todos os seus contornos revolucionários. Não por acaso o destino
dos intelectuais desta linha foi o de voltarem-se contra o marxismo
revolucionário, compondo, mais tarde, o Partido
Democrata-Constitucionalista burguês. No entanto, no princípio do
movimento social-democrata na Rússia, o “Marxismo-Legal”
apresentou-se como um de seus aliados.
Lênin dá pinceladas dos princípios a serem seguidos
nas alianças que os revolucionários devem fazer em sua atuação
político-concreta a partir deste particular exemplo. Comentando a
ruptura com os marxistas-legais ele afirmará que ela não se deve
“evidentemente, ao facto de os 'aliados' se terem revelado
democratas burgueses. Pelo contrário, os representantes desta última
tendência são aliados naturais e desejáveis da social-democracia,
sempre que se trate de tarefas democráticas desta”6. Para ele, no
entanto, a condição indispensável para a conclusão desta aliança
que os “socialistas tenham plena possibilidade de revelar à classe
operária a oposição hostil entre os seus interesses e os
interesses da burguesia”7.
O próprio punho de Lênin parece vigoroso o suficiente
para a dispensa de qualquer comentário. Contudo, é imperativo notar
a ineliminável conexão entre os dois pressupostos apresentados. Se
em uma mão o político russo deseja bem demarcar as reais divisões
dentro do espectro político vigente no momento em que escrevia, do
outro demonstra como esta clara demarcação torna-se necessária de
um ponto de vista estratégico incontornável. O que Lênin afirma
categoricamente aqui é que há algo do qual o movimento
revolucionário não pode abrir mão: a autonomia política do
proletariado. Sua preocupação principal é a de que, justamente
este movimento de arrefecimento do aspecto da Social-Democracia que
aponta para a superação radical da atual forma de sociabilidade,
que se baseia numa política colaboracionista entre as classes
sociais antagônicas, acabe por transformar os socialistas e o
próprio proletariado em um mero “apêndice dos liberais”8. Ou
seja, abandonar o combate pela transformação social para os
estreitos limites das refomas possíveis dentro das margens da
própria democracia burguesa.
Neste itinerário, a tarefa daqueles que desejassem,
verdadeiramente, combater o oportunismo no seio da Social-Democracia
seria, justamente a retomada do trabalho teórico. Concomitantemente,
é necessário empreender uma atuação enérgica contra as
dispersões do trabalho prático impedindo quaisquer movimentos que
apontassem no rebaixamento do programa e da tática daquela. Em
contraposição a isto, os mesmos defensores da liberdade de crítica
eram partidários de um combate ao que chamavam de “ossificação
do partido”9.
É dizer: colocavam-se contra um consequente trabalho
teórico empreendido pela Social-Democracia em vias de armar
ideologicamente o movimento. Através de um eloqüente silêncio em
torno das questões teóricas, os partidários da liberdade de
crítica, verdadeiramente, não buscavam a “substituição de uma
teoria por outra, mas a liberdade de prescindir de toda a teoria
coerente e reflectida”10 levando o movimento ao ecletismo e à
falta de princípios claros de atuação.
É neste momento que Lênin irá proferir sua célebre
frase: “Sem teoria revolucionária não pode haver também
movimento revolucionário!”11. Há implicações importantíssimas
nesta reflexão as quais só poderemos apontar introdutoriamente. Em
primeiro lugar, a postura leniniana é um claro repúdio ao
praticismo revolucionário do qual as organizações políticas de
esquerda sempre correram o risco de tornarem-se reféns. A
preocupação teórica implica um irrenunciável freio à prática
frenética a que se jogam grande parte dos militantes tornando a
corrente política revolucionária um poço de infindáveis
repetições de fracassos quando, por sua própria natureza, ela
deveria representar uma imponente fonte de criatividade e capacidade
de contorno de obstáculos.
Em segundo lugar, o contexto da obra de Lênin permite a
interpretação de que sua luta contra o revisionismo no seio da
Social-Democracia representa um dos polos de uma conexão lógica da
qual a outra é, exatamente, a defesa do Marxismo Ortodoxo. Não se
trata aqui de nos aprofundarmos na questão do que representa esta
expressão. Basta entender que a preocupação leniniana expressa em
repudiar o ecletismo no seio do pensamento teórico revolucionário,
atada a indiscutível preocupação com a intermitência do trabalho
teórico, representa, na verdade, não uma crença cega e dogmática
na teoria de Marx. Pelo contrário, há aqui uma profunda reflexão
metodológica frente à qual o teórico revolucionário não pode se
furtar: de um lado pôr-se aparatado do ponto de vista teórico mais
adequado para a interpretação do movimento real, a partir de uma
opção clara e irrenunciável pelo método materialista
histórico-dialético; de outro, prevenir-se, em sua própria
atividade de formulação, do risco posto pelo ecletismo, desta vez
no campo gnosiológico, de proceder, uma vez mais, à conciliação
entre os irreconciliáveis interesses e pontos de vista de classe, o
que levaria a um reflexo deformado da realidade.
Por fim, apesar de não expresso nas próprias palavras
de Lênin, o fato de que as conclusões a que se pode chegar a partir
da postura apresentada do autor, parece nos permitir a interpretação
de que o mesmo possuía uma formidável clareza de que, além de não
haver movimento revolucionário sem teoria revolucionária, não
haveria, dialeticamente, também, teoria revolucionária sem
movimento revolucionário. A perspectiva do Marxismo Ortodoxo, a esta
altura já defendida pelo dirigente social-democrata, não se
encontraria completa se dela não fosse decorrência necessária a
postura teórica a partir da perspectiva da classe proletária. Neste
sentido, a evolução consciente do movimento da contradição em que
a classe trabalhadora se encontra em relação ao Capital, faz
impulsionar, seja a partir de novas demandas, seja a partir do
aclaramento de novos objetos e perspectivas teóricos, a própria
teoria revolucionária que, por sua vez, retorna ao movimento
munindo-o do aparato interpretativo necessário para a formulação
de suas tática e estratégia. E, neste sentido, apenas uma
compreensão teórica de vanguarda permitiria a construção de um
partido de vanguarda12, o que será novamente explorado mais adiante.
De conclusão a este primeiro embate levado à frente
por Lênin, não parece demais resgatar que sua preocupação
principal aqui é a do resguardo da autonomia do movimento
revolucionário. Se, em suas primeiras linhas, esse resguardo se dá
no campo político, com uma discussão acerca do que deve ser aceito
frente ao movimento revolucionário e mesmo das alianças que lhe são
possíveis, nas conclusões de suas demonstrações o autor prova
que, sem que essa autonomia seja conscientemente construída
concomitantemente no campo teórico, a sua expressão concreta
encontrar-se-á perenemente ameaçada. Esta é a linha de pensamento
que acreditamos apresentar a chave para a compreensão de toda a
presente obra em seus nexos mais fundamentais.
O culto à espontaneidade
Na sequência da obra o autor levará a cabo um
aprofundamento do que já antecipara. Aqui, a clareza teórica e de
princípios é a mais importante chave para a polêmica acerca de
como se deve tratar a consciência espontânea que brota nas massas
em luta.
A classe trabalhadora, por conta do próprio papel por
ela ocupado no palco da produção econômica, entrará,
invariavelmente, em contradição com o patronato. Isto dará margens
à luta econômica a qual o autor em discussão caracterizará a
partir de Engels: a “luta econômica prática” ou “resistência
aos capitalistas”13. Seria, em suma, a luta por uma forma mais
vantajosa de vender a mão-de-obra ao Capital, a luta sindical mais
propriamente dita. Em Lênin, esse elemento espontâneo expressa-se
como a “forma embrionária” do movimento consciente14. Um embrião
da luta de classes.
O autor utiliza o exemplo das greves ocorridas na Rússia
na década de 1890. Durante estas movimentações laborais, os
operários demonstraram claros vislumbres de consciência. De um
lado, a aparente imutabilidade do regime ao qual estavam submetidos
desmoronava, deixando aberta a possibilidade de se tornar, se não
consciente, pelo menos sensível a necessidade de uma resistência
coletiva por parte dos mesmos. Nestes contextos de mobilização os
operários foram capazes de formular reivindicações e pautas a
serem atendidas pela patronal e mesmo pelo governo. Mesmo este
relativo grau de conscientização não deixa de ser entendido como
um movimento espontâneo por parte do proletariado.
A interpretação que Lênin quer passar é a de que a
classe operária, em seu cotidiano, percebe, cedo ou tarde, a
necessidade de se organizar por alguma pauta específica de seu
contexto de trabalho. Esta percepção leva à frente algum mínimo
grau de organização para possibilitar a conquista de vitórias
durante a mobilização que passa a se construir. É dizer, a
espontaneidade é um dado objetivo do movimento de massas, não algo
a ser louvado ou rejeitado. É assim que o autor se coloca em
declarada contradição com as tendências da Social-Democracia que
em seu programa buscavam adequar-se às “necessidades do
proletariado” e, assim, rebaixar-se à mera política sindical,
trade-unionista.
A luta trade-unionista não chegaria a alcançar o nível
da luta de classes. Aqui se faz importante uma pequena discussão.
Nesta obra de Lênin, a expressão luta de classes é, parece-nos,
sinônimo, apenas, de luta pela revolução política. Preferimos
esta expressão do que entender como a luta revolucionária, ou mesmo
a luta política. Lênin contrapõe a luta de classes à luta
trade-unionista15 esclarecendo, na mesma oportunidade, no entanto,
que a última não exclui completamente uma luta política dirigida
contra o governo. A luta de classes seria, então a luta entre as
classes pelo poder político, não a luta entre elas nas fronteiras
deste mesmo poder. Isto permite a interpretação de que se trata
aqui da luta revolucionária. No caso, contudo, não se trata da luta
revolucionária em âmbito amplo, por uma alteração
sócio-metabólica global, mas a luta que leva à desestabilização
do poder político da classe dirigente passando-o à mão da classe
dominada como um passo fundamental para a resolução desta
alteração.
Neste sentido, a luta sindical, que brota do próprio
cotidiano no movimento laboral, não pode alcançar a luta pela
revolução política, pois seus objetivos imediatos não a colocam
frente a esta processualidade espontaneamente. Aqui chega-se a um
trecho polêmico da obra leniniana. O revolucionário russo irá
declarar peremptoriamente: “os operários nem sequer podiam ter
consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de
fora”16.
Sem dúvidas, este trecho pode com muita facilidade ser
mal interpretado. Retirá-lo de uma exegese sistemática da obra de
Lênin pode levar a conclusões (para os simpáticos e os opositores)
de concepções meramente dirigistas na obra em discussão.
Interpretação, no entanto, equivocada. O autor não tem pudores em
declarar que a própria fundação da teoria revolucionária encontra
seu berço na intelectualidade burguesa radical. E ainda neste
sentido, na própria Rússia, esta evolução teria sido dada sem um
contato orgânico com o movimento operário.
A questão se põe em outro patamar, contudo. O que o
texto leniniano vem a colocar aqui não é que a teoria
revolucionária venha do fora do proletariado como uma perspectiva
estranha a ele. Pelo contrário! Como visto, a sua escolha pela
defesa do Marxismo Ortodoxo estaria, aí, completamente em
contradição caso entendesse que a teoria revolucionária nada mais
é do que a teoria burguesa construída para o proletariado. A teoria
da revolução é, invariavelmente construída pelo sujeito histórico
do proletariado, ainda que o indivíduo concreto que a formule não
pertença, ele próprio, à classe em questão. De fato, apenas a
partir da entrada em cena da classe operária e, com isto, do
surgimento objetivo de sua perspectiva (mesmo que esta perspectiva
não se tenha tornado consciente para a classe em-si), é que se pode
erigir o monumento teórico que visa à superação da sociabilidade
do Capital. A consciência de classe é um dado objetivo, ainda que
não atual, posto que o interesse da classe diz respeito direto ao
seu papel no jogo sócio-histórico material, ainda que esta não
tenha se apercebido disso enquanto classe17.
No entanto, já neste momento, Lênin percebe que o
cotidiano da classe trabalhadora não permite que seja ela, enquanto
sujeito histórico concreto, ou mesmo que os seus membros específicos
(apesar de não negar esta possibilidade18), aquela a elaborar a
teoria que lhe serve de arma ideológica e que, em última medida,
explica a sua realidade e as possibilidades de superação da mesma.
O próprio exercício teórico-científico, como mais tarde
demonstrará Lukács, exige um distanciamento do cotidiano para um
posterior retorno reflexivo ao mesmo. Comentando este específico
trecho da obra de Lênin, diz o filósofo marxista húngaro:
“Lenin muestra, respecto de la espontaneidad de los
movimientos económicos de la clase obrera, que les falta
precisamente la consciencia de las más amplias conexiones sociales,
de las finalidades que rebasan la imediatez; a los obreros em huelga
espontánea de la Rusia de comienzos del siglo XX tenía que
faltarles, dice Lenin, 'el conocimento de la contraposición
irreconciliable entre sus intereses y el régimen politico-social
existente', o sea, la comprensión de las ulteriores consecuencias
necesarias de su propia acción. (…) Al desarrollar Lenin su
crítica político-social de la espontaneidad em el sentido de que la
recta consciencia no puede 'enseñarse a los trabajadores sino desde
fuera' esto es, fuera da lucha economica, 'desde fuera de la esfera
de las relaciones entre los obreros y los empresarios', desde fuera
del entorno inmediato, de las finalidades inmediatas de los
trabajadores mismos, (…) el 'desde fuera' de Lenin es el mundo de
la ciencia”19.
Esta citação do Lukács demonstra a real intenção da
tese leniniana. Ao afastar-se do cotidiano da classe o indivíduo é
capaz de produzir reflexos condizentes com as exigências da
objetividade científica necessária para correta interpretação da
realidade por parte da teoria. Não é possível aprofundar a questão
da relação entre cotidiano, história e ciência, mas por ora,
basta dizer que a ciência queda como um complexo relativamente
autônomo que necessita de uma quebra do decorrer cotidiano para
cumprir exatamente as funções que o próprio cotidiano lhe lega. E
neste sentido, Lênin entende, perfeitamente esta questão. Por isto,
o operário que formula teoria revolucionária é, no momento desta
formulação, um teórico e não um trabalhador.
Esta questão é apresentada por Lênin de maneiras
muito mais concretas do que por Lukács, no entanto. Para o russo, a
espontaneidade pode levar os trabalhadores, unicamente, para a
ideologia burguesa. Para ele, a inclinação ao elemento espontâneo
das massas operárias é sinônimo, na verdade, de deixar refém da
ideologia da classe dominante, largamente mais difundida no cotidiano
social, bem como protegida pela maior parte das instituições com as
quais o indivíduo concreto tem contato. Interessante atentar para o
fato de que, apesar desta percepção coerente com o próprio Marx em
sua A Ideologia Alemã, Lênin não teria como ter tido acesso a este
texto específico no momento da elaboração do Que Fazer?. Assim, a
inclinação ao aspecto espontâneo do movimento operário “significa
– independentemente da vontade de quem o faz – fortalecer a
influência da ideologia burguesa sobre os operários”20.
Não haveria, na interpretação leniniana, algo fora da
alternativa historicamente posta entre ideologia burguesa ou
ideologia socialista. Neste sentido, o que não fortalecesse a
ideologia socialista, automaticamente estaria do lado do
fortalecimento do campo de influência burguês. A rendição
trade-unionista, “economista” à luta cotidiana do proletariado
nada mais representaria do que a “política burguesa para o
proletariado”21.
Ideologia aqui, por sinal, não se confunde com falsa
consciência. Pelo contrário, a ideologia pode, neste contexto,
representar, justamente, a consciência de classe em seu mais claro
esplendor. No caso em questão, a ideologia é, justamente, a
auto-compreensão que a classe tem de si-mesma, que pode ser limitada
apenas pelos próprios interesses históricos da classe em questão.
Ideologia burguesa é a compreensão burguesa da própria burguesia
e, como reflexo, de todas as outras classes e questões relacionadas
ao ser social. A ideologia socialista será, por sua vez, a
compreensão proletária do próprio proletariado, bem como a sua
visão de mundo ontologicamente fundada em seu papel de classe. Pelo
próprio interesse em revelar a realidade de desigualdade à qual o
regime burguês submete a humanidade, a perspectiva proletária (ou,
neste caso, socialista) é a única que pode refletir fielmente a
realidade objetiva. Nada disto impede, claro, que no desenrolar
histórico-concreto elementos de ambas as classes adotem perspectivas
antagônicas à sua origem. A classe enquanto sujeito coletivo,
contudo, não pode apresentar esta postura.
A conclusão de Lênin, então, não poderia ser outra:
“Por isso, a nossa tarefa, a tarefa da social-democracia, consiste
em combater a espontaneidade, em fazer com que o movimento operário
se desvie desta tendência espontânea do trade-unionismo de se
acolher debaixo da asa da burguesia e em atraí-lo para debaixo da
asa da social-democracia revolucionária”22. O “combate” aqui
não se trata de repúdio à espontaneidade, como visto, um dado
simplesmente objetivo do processo de lutas, mas de um combate ao seu
culto e ao rebaixamento da política social-democrata a apenas o seu
nível.
O Trade-Unionismo, o “Economismo” e o Terrorismo
As formulações apresentadas anteriormente servem de
fundo para uma cada vez maior concretude das discussões apresentadas
no Que Fazer?. A demonstração da importância da tarefa de
formulação teórica demonstra seu desdobramento na luta contra o
culto à espontaneidade. Por outro lado, esta última polêmica tem,
no fundo, a preocupação de impedir, mais uma vez, que o
proletariado caia sob as asas da burguesia. Não é demais lembrar, o
objetivo, por fim, é, precisamente, preservar a autonomia política
do movimento operário frente ao seu antagonista fundamental.
É neste sentido em que se coloca a luta contra o
“economismo”. Esta corrente, nada mais é do que a expressão
histórico-concreta das tendências apontadas por Lênin discutidas
acima. Para os “economistas” a tarefa da Social-Democracia seria
“imprimir um caráter político à própria luta econômica”.
Como já discutido, as concepções apresentadas na obra discutida
demonstram que a luta econômica, ou seja, a luta trade-unionista,
não está absolutamente desencontrada com a luta política. Pelo
contrário, existe uma expressão claramente política desta luta,
quando os trabalhadores elevam suas reivindicações a garantias que
deveriam ser oferecidas pelo próprio governo.
Mais do que isto, para Lênin, é a polícia quem,
costumeiramente, perfaz a melhor elevação à política da luta
econômica23. No momento em que esta reprime as manifestações
classistas por melhores condições de trabalho ela coloca a classe
diretamente contra o Estado autocrático que a oprime. No entanto, o
caráter político da luta trade-unionista não é mais do que a luta
por reformas que tornem mais vantajosa a venda da força de trabalho.
Quanto a isto, Lênin não apresenta dúvidas:
“A social-democracia revolucionária sempre incluiu e
continua a incluir no quadro das suas atividades a luta pelas
reformas. Mas usa a agitação 'econômica' não só para exigir do
governo toda a espécie de medidas mas também (e em primeiro lugar)
para exigir que ele deixe de ser um governo autocrático. Além
disso, considera seu dever apresentar ao governo esta exigência, não
só no terreno da luta econômica mas também no terreno de todas as
manifestações em geral da vida política e social. Numa palavra,
subordina, como a parte ao todo, a luta pelas reformas à luta
revolucionária pela liberdade e o socialismo”24.
Esta questão põe em jogo concretamente, então, o
primeiro dos problemas que Lênin declara intentar enfrentar ao
organizar seu texto: o caráter da agitação política da
Social-Democracia. Para o revolucionário, como demonstrado, o que
está em jogo não é a mera conquista de direitos para a classe
trabalhadora vender melhor sua força de trabalho, mas o fim do
regime que força com que os despossuídos tenham de subordinar-se
aos proprietários.
Os “economistas” julgavam que o meio “mais
amplamente aplicável” para a agitação da Social-Democracia
fossem, justamente, as denúncias econômicas, ou seja da exploração
concreta das fábricas. Escondiam, através da argumentação de que
era necessário apresentar à classe trabalhadora “resultados
tangíveis”, um rebaixamento programático e tático do partido
Social-Democrata. Deixava-se de lado, portanto, a luta pela superação
do estado de coisas, para optar-se por uma macia adequação a ele. A
política trade-unionista seria, por isto mesmo, a política da
conciliação com a burguesia. Em contramão, a concepção leniniana
demonstra que não há qualquer razão para acreditar-se nisto.
Em primeiro lugar, as denúncias econômicas não eram,
por nenhuma razão especial que fosse, o meio mais amplo de agitação
para os revolucionários. Representava, antes disto, apenas um meio a
mais para a realização desta agitação. Em adição a ela,
deveriam os sociais-democratas construírem denúncias concretas
acerca de todas as outras questões candentes do tráfico social a
fim de proceder a uma verdadeira educação política do
proletariado. Em verdade, construir as denúncias em torno, tão
somente, da luta econômica, na tentativa de imprimir-lhe um caráter
político, era dizer ao operário o que ele já sabia. A verdadeira
educação revolucionária do proletariado buscaria fazer com que
este pudesse passar a entender a sua relação com todas as outras
classes e com o Estado. Apenas assim, julgava Lênin, poder-se-ia
“elevar a atividade da massa operária”25 passando esta a contar
com verdadeira consciência política.
O terrorismo assemelhava-se, neste aspecto, ao
“economismo”. Escolhendo uma linha de menor resistência, ambos
cultuavam, a seu modo, a espontaneidade da classe. De um lado, o
“economismo” não indo além da organização das denúncias
econômicas apenas seguia a própria movimentação que os
trabalhadores já fariam sem que eles se fizessem presentes. Os
terroristas, por sua vez, intentavam incentivar a ação
revolucionária da classe a partir de ações individuais levadas a
frente contra o Estado autocrático.
Na prática, o que ambas as tendências deixavam de lado
era a educação política da classe. Na verdade, subestimavam a
atividade revolucionária das massas26. Em sua atividade política
deixavam de lado uma tarefa que Lênin contornaria como
insubstituível em qualquer momento: a da organização de denúncias
políticas com o fim de educar politicamente os operários.
Estas denúncias deveriam ser construídas em todos os
terrenos. De maneira alguma deveriam estar rebaixadas, meramente, a
resultados tangíveis, mas, pelo contrário, deveriam dar mostras da
superioridade da resolução socialista dos problemas concretos em
questão. O chefe político social-democrata precisaria saber
“aproveitar o mais pequeno pormenor para expor perante todos as
suas convicções socialistas e as suas reivindicações
democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance
histórico-mundial da luta emancipadora do proletariado”27.
Para levar à frente tal tarefa, os socialistas deveriam
“ir a todas as classes”28. Apenas com destacamentos em todas as
partes, o movimento social-democrata seria capaz de organizar o
descontentamento geral em um programa político claro. A preocupação
aqui apresentada é a de transformar o proletário, base necessária
da Social-Democracia, em classe de vanguarda frente ao movimento
político geral. Significa dizer que os revolucionários deveriam
conhecer as demandas concretas de cada estrato populacional e,
concomitantemente, serem capazes de formular, a partir da perspectiva
do proletariado, a resolução destas questões. Esta “ida a todas
as classes”, portanto, não representaria de forma alguma uma
diluição do caráter de classe da Social-Democracia, pelo
contrário, seria justamente assim que ele estaria resguardado29.
Com este itinerário, o autor buscava a elevação da
consciência política do proletariado à de classe dirigente da
transformação estratégico-global. Somente através deste exercício
indispensável poderia a Social-Democracia representar, de fato, uma
vanguarda política digna de ser seguida por elementos de outros
estratos sociais. Julgava, portanto, que
“consciência das
massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe
se os operários não aprenderem, com base em factos e acontecimentos
políticos concretos e, além disso, necessariamente de actualidade,
a observar cada uma das outras classes sociais em todas as
manifestações de sua vida intelectual, moral e política; se não
aprenderem a aplicar na prática a análise materialista e a
apreciação materialista de todos os aspectos da actividade e da
vida de todas as classes, camadas e grupos da população”30.
A organização revolucionária
Os debates levados a frente por Lênin vão desaguar em
sua formulação acerca do modo de organização de um partido
revolucionário. A questão que parece mais premente em ser percebida
é de que as propostas que o autor faz ao movimento social-democrata
dizem respeito, em sua maior parte, ao contexto político russo. Além
disto, não é demais afirmar que o trabalho que empreende aqui é o
de concretização em termos organizativos das formulações que
apresenta durante todo o livro.
Ainda que Lênin sempre tenha, como pano de fundo, a
conjuntura política russa, o que demonstra sua preocupação com a
bem contextualização de proposta organizativa, não a encarando
como universal, Atilio Boron, lembra que diversos autores identificam
as teses lançadas no Que Fazer? à elaboração das 21 condições
às quais os partidos comunistas tinha de se adequar para fazer parte
da III Internacional31. Dentre elas, a exigência de partidos
centralizados de caráter conspiratório figura entre as suas
principais. Este tem sido, inclusive, ainda a principal forma de
organização dos partidos que, nos mais diversos contextos,
reivindicam a concepção leninista de organização, decalcando os
moldes apresentados pelo revolucionário.
Aqui, pretendemos uma apresentação do que nos
pareceram os aspectos mais marcantes desta questão durante a leitura
do Que Fazer?. Trata-se, portanto, de demonstrar porque a defesa de
Lênin de determinado formato organizativo para os revolucionários.
Em um primeiro momento, cabe lembrar que o objetivo
leniniano é “elevar a atividade das massas operárias” até o
nível da luta de classes, no sentido acima indicado de luta pela
revolução política. Para tanto, a primeira identificação que faz
o dirigente social-democrata é de que é necessária uma organização
de revolucionários capaz de atuar em toda a Rússia. Isto o coloca
em contraposição ao que denominou de “trabalho artesanal”
largamente aplicado durante os primeiros anos da Social-Democracia
naquele país32. Em geral, representava operações que não
resultavam “de um plano sistemático, bem meditado e minuciosamente
preparado, de uma luta prolongada e tenaz” sendo, simplesmente o
crescimento espontâneo do trabalho iniciado ainda embrionariamente
por militantes sem experiência política. O desfecho frequente
destas posturas era a prisão dos militantes que as punham em
prática.
A ideia da discussão leniniana, da qual é possível a
percepção a partir de uma leitura sistemática de seu texto, é a
de que o caráter do programa político aplicado pelo movimento irá,
por sua vez, determinar o próprio caráter que deve possuir a
organização revolucionária necessária para aplicá-lo, ou seja,
pô-lo em prática através da militância concreta. O “economismo”,
tendência social-democrata combatida por Lênin, como visto, tem,
como seu decorrente evidente, no que diz respeito ao reflexo
organizativo de suas opções políticas, o “trabalho artesanal”
supracitado.
“Para a 'luta econômica contra os patrões e o
governo' é absolutamente desnecessária uma organização
centralizada para toda a Rússia (que, por isso mesmo, não pode
formar-se no decorrer de tal luta), uma organização que reúna num
único impulso comum todas as manifestações de oposição política,
de protesto e de indignação, uma organização formada por
revolucionários profissionais e dirigida por verdadeiros chefes
políticos de todo o povo”33.
Desta reflexão pode-se extrair a seguinte decorrência:
é da tarefa eleita pela organização que brotará, por decorrência,
as formas organizativas necessárias e possíveis para o seu
cumprimento. Quando Lênin afirma que a luta econômica não pode
formar uma organização revolucionária para toda a Rússia, o faz
por entender que, em verdade, este processo espontâneo de embates
dos operários com os patrões e governo não tona perceptível esta
necessidade. Não o torna pelo próprio caráter particular que cada
luta de cunho econômico específico deve possuir, já que se tratam
de necessidades concretas do cotidiano de trabalhadores em
determinada fábrica, ou determinado ramo de trabalho.
Para a luta pela desestabilização do regime, no
entanto, as necessidades organizativas elevam-se a um grau
indiscutivelmente superior. Para tanto, Lênin coloca a preocupação
de que na Rússia, a forma exigida pelo clima político da época era
a de uma organização de caráter eminentemente conspiratório.
Neste ponto, ele a diferencia completamente da organização de
operários para a luta sindical. A organização da qual fala o autor
é a organização de revolucionários:
“a organização de um partido social-democrata deve
ser, inevitavelmente, de um gênero diferente da organização dos
operários para a luta econômica. A organização de operários deve
ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser o mais
ampla possível; em terceiro lugar, deve ser o menos clandestina
possível. (…) Pelo contrário, a organização dos revolucionários
deve englobar, antes de tudo e sobretudo, pessoas cuja profissão
seja a actividade revolucionária (por isso falo de uma organização
de revolucionários, pensando nos revolucionários
sociais-democratas). Perante esta característica geral dos membros
de uma tal organização, deve desaparecer por completo toda a
distinção entre operários e intelectuais, para não falar já da
distinção entre as diferentes profissões de uns e outros.
Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa, e é
preciso que seja o mais clandestina possível”34.
Lênin faz, nesta mesma página, a fundamental ressalva
que já apontávamos de que o que propunha para organização
revolucionária russa dizia respeito, apenas, às necessidades
organizativas do movimento revolucionário russo. Aqui é inevitável
notar que a escolha do método organizativo a ser seguido pelos
socialistas, segundo o que aponta uma interpretação para além do
meramente expresso no Que Fazer?, deve responder a, pelo menos, duas
questões fundamentais: primeiro, como já visto, as necessidades
postas pelo programa definido, no caso o programa revolucionário;
segundo, as necessidades colocadas pela conjuntura política em que
se deve atuar. Significa dizer, a forma da organização não está
pronta para nenhuma situação. Isto não inviabiliza a possibilidade
de ser buscada, para cada situação específica, a ferramente
revolucionária à altura de atuar na mesma. A idéia que se coloca é
que, guardados os devidos graus mais ou menos variáveis das
capacidades organizativas do movimento socialista em cada momento e
localidade, há sempre espaço suficiente para que respostas deste
tipo sejam oferecidas e, dentro dos limites históricos postos, para
o seu sucesso possível.
Na concepção leniniana, no caso da Rússia
autocrática, seria necessária uma organização de revolucionários
profissionais. Daí a inexistência de diferenças, no partido
revolucionário, entre operários e intelectuais. Dentro do partido
todos devem estar devotados à causa da revolução, inclusive com
possibilidade de assalariamento pela execução de suas tarefas
pertinentes a isto.
Concomitantemente, e ao contrário da organização
sindical, o partido revolucionário russo deveria possuir um caráter
conspiratório (e, no caso específico da Rússia, clandestino).
Isto, evidentemente, acarretaria a redução do número de seus
componentes e, de uma maneira geral restringia a participação em
seu interior. De um lado, nos parece que este é um correlato direto
da preocupação leniniana já exposta em garantir que apenas os
elementos revolucionários componham a organização que possui o
objetivo de construir a revolução política. Por outro lado, é uma
exigência do contexto russo, no qual uma organização aberta às
massa não é realmente acessível aos trabalhadores, “na
realidade, é aos gendarmes que esta organização será mais
acessível e porá os revolucionários mais ao alcance da Polícia”35.
Isto não nega a necessidade que o partido
revolucionário teria em dialogar com a massa operária. Na verdade,
esta necessidade continua constante. No entanto, a rigorosa seleção
de seus membros deve também servir para, aqui no campo
concreto-organizativo, garantir a ortodoxia do programa, impedindo o
rebaixamento em direção à burguesia. Para Lênin, o diálogo com
as camadas operárias deve acontecer no sentido da construção de
explicações acerca do socialismo com real acessibilidade ao nível
cultural popular. Isto não é, de maneira alguma, ser permissivo com
qualquer rebaixamento programático ao “nível das massas” sob a
desculpa de que elas não aceitariam a proposta socialista. Quanto a
isto o revolucionário russo é categórico: “nossa atenção deve
voltar-se principalmente para elevar os operários ao nível dos
revolucionários e não para descermos nós próprios infalivelmente
ao nível da 'massa operária', como querem os 'economistas', e
infalivelmente ao níveo do 'operário médio', como quer o Svoboda
(que, neste aspecto, passa ao segundo grau da 'pedagogia'
economista)”36.
Este caráter conspiratório da proposta leniniana para
os revolucionários russos leva-nos a uma problematização sobre um
dos aspectos que erege uma polêmica de tão ampla magnitude, que
esta pode igualar-se apenas ao peso que este possuiu na história do
movimento socialista mundial dos tempos do próprio Lênin até o
período atual. Trata-se da questão do Centralismo Democrático. Não
é demais lembrar que este texto não é o local no qual gostaríamos
de fazer uma reflexão mais profunda acerca da questão, algo com o
qual qualquer estudioso da história da esquerda terá, cedo ou
tarde, de debater-se.
Lênin não utiliza propriamente esta expressão ainda
neste texto. Sua preocupação aqui é com as restrições
democráticas que um partido de caráter conspiratório
necessariamente imporia aos sociais-democratas. Após comentar com
certa exaltação a forma aberta, permitidaa pelo regime político da
Alemanha, do Partido Social-Democrata Alemão, ele afirma:
“Mas tentai encaixar este quadro na moldura de nossa
autocracia! Será por acaso concebível entre nós que 'todo aquele
que aceita os princípios do programa do partido e ajuda o partido na
medida das suas forças' controle todos os passos dados pelos
revolucionários clandestinos? Que todos elejam uma ou outra pessoa
entre estes últimos, quando, no interesse de seu trabalho, o
revolucionário é obrigado a ocultar a sua verdadeira personalidade
a nove décimos destes 'todos'? (…) uma 'ampla democracia' de uma
organização de partido, nas trevas da autocracia, quando são os
gendarmes quem selecciona, não é mais do que um brinquedo inútil e
prejudicial”37.
Esta reflexão leva a um último ponto que gostaríamos
de levantar para encaminhar a conclusão do presente trabalho. Lênin
acaba, desta forma, por depositar uma confiança formidável na
direção revolucionária do partido Social-Democrata. Para o autor
de Que Fazer?, a direção que não realmente atenda às demandas da
luta revolucionária acabará, por conseguinte, não sendo seguida
nos passos fundamentais da mesma. A preocupação com a necessidade
de eleição ampla desta direção, apresentada como crítica a Lênin
neste período, é tratada por ele da seguinte forma:
“Cândida, simplesmente porque ninguém obedecerá a
um 'areópago' ou a pessoas de tendências antidemocráticas, sempre
que 'os camaradas que os rodeiam não tenham uma confiança na sua
inteligência, na sua energia e na sua lealdade'. Indecente, como
saída demagógica em que se especula com a vaidade de uns, com a
ignorância de outros sobre o verdadeiro estado do nosso movimento e
com a falta de preparação e o desconhecimento da história do
movimento revolucionário de ainda outros. O único princípio de
organização sério a que se devem subordinar os dirigentes do nosso
movimento deve ser: o mais severo secretismo, a mais severa selecção
dos filiados, e a preparação de revolucionários profissionais.
Estando reunidas estas qualidades, estará assegurada uma coisa mais
importante do que 'democracia', a saber: a plena e fraternal
confiança mútua entre os revolucionários”38
Conclusões Provisórias
Como dito no início, o objetivo deste curto trabalho
não era o da exploração de todos os pontos da presente obra de
Lênin. Isto requisitaria uma dedicação muito maior do que a que
foi aqui expedida. Apenas para exemplificar, não discutimos aqui a
importância dada pelo político russo para a construção de um
órgão jornalístico para todo o país que serviria, ao mesmo tempo,
como espaço de debate teórico e de organização centralizada das
informações e posturas políticas do partido. Questões como esta
terão de ser deixadas para outros momentos.
Por ora, é imperioso resgatar o que julgamos ser a
ideia central do texo leniniano: a luta pela construção e
manutenção da autonomia política do proletariado. Para o
revolucionário, este ponto é de fundamental importância para a
atuação do movimento socialista. Sua preocupação o desdobra em
diversos campos: o político-organizativo, não permitindo que
elementos não-revolucionários componham o partido; político-tático,
determinando em que circunstâncias podem os socialistas atuarem com
outros campos políticos; teórico, evitando o ecletismo e, com isto,
a possibilidade de recuos ideológicos à burguesia; programático,
evitando os rebaixamentos de qualquer natureza na perspectiva do
partido.
Isto, como demonstrado, não deve fechar a preocupação
do movimento socialista apenas sobre a classe operária. Muito pelo
contrário, fazer isto seria efetivar uma verdadeira rendição ao
caráter espontâneo da luta econômica ligada à vida nas fábricas.
Para além desta perspectiva, Lênin propõe que a Social-Democracia
seja capaz de discutir todos os problemas presentes na vida social,
que seja capaz de formular soluções para todas as demonstrações
de descontentamento com a qual se depare. Estas soluções, no
entanto, devem ser apresentadas a partir da perspectiva do
proletariado, o que pode transformá-lo na vanguarda política pela
superação da ordem.
A escolha programática é, então, a da superação
radical do regime político, e não a transformação dele em uma
dominação mais confortável. O objetivo dos socialistas deve ser o
fim do sistema que força os não proprietários estarem subordinados
aos proprietários. Isto põe na ordem do dia o debate acerca do tipo
de organização necessária para a atuação de acordo com as
exigências deste programa.
Lênin propõe, para a Rússia, uma organização de
tipo conspiratório e centralizada. Este é, talvez, o caráter de
maior peso em sua obra. Aqui não é utilizado o termo Centralismo
Democrático. No presente texto, ele apenas propõe restrições
democráticas devido ao contexto russo na época em que é escrita a
obra. No entanto, há que se refletir acerca do fato de que tais
propostas de leninianas ainda compõem o rol de uma grande parte de
estatutos de partidos de esquerda nos dias atuais. Esta é uma
questão a ser analisada com bastante profundidade. É quase mística
a confiança que o autor exige na direção. As evidências de que o
direcionamento do partido para rumos não revolucionários,
especialmente sobre o período estaliniano, são de tal tamanho que
dispensam enumeração. E mesmo sem inteligência, energia
revolucionária, ou mesmo boas perspectivas teóricas, uma
determinada direção conseguiu se manter a frente do movimento
socialista durante longos anos e com base, justamente, em tais
restrições democráticas exigidas por tal método. O resultado, no
fim, foi justamente o inverso do que queria Lênin: o movimento
operário teve, durante largos momentos, sua autonomia prejudicada e
colocada a mercê dos interesses políticos particulares da camarilha
do partido.
Ainda assim, e talvez por isto mesmo, o Que Fazer? seja
uma obra de fundamental importância para a esquerda. Como dito, ela
guarda sua atualidade por tocar nos pontos que continuam
profundamente na agenda de discussões daqueles que buscam a
construção do movimento socialista mundial. As fronteiras
teórico-programáticas de uma organização, seus métodos e suas
táticas políticas, a relação entre partido e movimento de massas
etc. Todas estas questões são discutidas na pequena brochura
apresentada por Lênin. E, mesmo estando em grande parte voltadas
para oferecer respostas à realidade russa do início do séc. XX, a
forma como o autor as trata parece denotar traços de universalidades
das quais o movimento revolucionário não pode se desviar sob pena
de não poder ser chamado, realmente, de revolucionário.
Referências Bibliográficas
BORON, Atilio A. Extracto do
estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de
“Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine,
publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg,
2004.
LÊNIN, V. I. Que Fazer?
Problemas candentes do nosso movimento. 2ª Ed. Lisboa: Edições
Avante!, 1978.
LUKÁCS, Georg. Estetica. La
peculiaridad de lo estético. v. I. Barcelona: Ediciones Grijalbo,
1966.
MÉSZÁROS, István. Consciência
de Classe Necessária e Consciência de Classe Contingente. In
MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São
Paulo: Boitempo, 2008.
1BORON, Atilio A. Extracto do
estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de
“Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine,
publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg,
2004.
2LÊNIN, V. I. Que Fazer?
Problemas candentes do nosso movimento. 2ª Ed. Lisboa: Edições
Avante!, 1978. p. 10.
3LÊNIN, V. I. op. cit. pp.
13-4.
4LÊNIN, V. I. op. cit. p. 16.
5LÊNIN, V. I. op. cit. pp.
16-7.
6LÊNIN, V. I. op. cit. p. 24.
7Idem, ibdem.
8LÊNIN, V. I. op. cit. p. 25.
9LÊNIN, V. I. op. cit. p. 31.
10Idem, ibdem.
11Idem, ibdem.
12LÊNIN, V. I. op. cit. p. 33.
13LÊNIN, V. I. op. cit. p. 66.
14LÊNIN, V. I. op. cit. p. 38.
15“formulavam-se
reivindicações precisas, calcula-se antecipadamente o momento mais
favorável, discutem-se casos e exemplos de outras localidades, etc
(…) as greves representavam já embriões – mas nada mais do que
embriões – da luta de classes. Em si mesmas, estas greves eram
luta trade-unionista, não eram ainda luta social-democrata”.
LÊNIN, V. I. op. cit. p. 38-9.
16LÊNIN, V. I. op. cit. p. 39.
17Sobre esta questão ver o
interessante ensaio Consciência de Classe Necessária e Consciência
de Classe Contingente, de MÉSZÁROS, István. In MÉSZÁROS, István.
Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008.
18“Isto não significa,
naturalmente, que os operários não participem nessa elaboração.
Mas não participam como operários, participam como teóricos do
socialismo, como os Proudhon e os Weitling; noutros termos, só
participam no momento e na medida que consigam dominar, em maior ou
menor grau, a ciência da sua época e fazê-la progredir” LÊNIN,
V. I. op. cit. p. 48.
19LUKÁCS, Georg. Estetica. La
peculiaridad de lo estético. v. I. Barcelona: Ediciones Grijalbo,
1966. pp. 76-7.
20LÊNIN, V. I. op. cit. p. 47.
21LÊNIN, V. I. op. cit. p. 109.
22LÊNIN, V. I. op. cit. p. 49.
23LÊNIN, V. I. op. cit. p. 85.
24LÊNIN, V. I. op. cit. p. 74.
25LÊNIN, V. I. op. cit. p. 81.
26LÊNIN, V. I. op. cit. p. 90.
27LÊNIN, V. I. op. cit. p. 93.
28LÊNIN, V. I. op. cit. p. 92.
29LÊNIN, V. I. op. cit. p. 103.
30LÊNIN, V. I. op. cit. pp.
81-2.
31BORON, Atilio A. Extracto do
estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de
“Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine,
publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg,
2004.
32LÊNIN, V. I. op. cit. pp.
114-5.
33LÊNIN, V. I. op. cit. p. 113.
34LÊNIN, V. I. op. cit. p. 126.
35LÊNIN, V. I. op. cit. p. 134.
36LÊNIN, V. I. op. cit. p. 146.
37LÊNIN, V. I. op. cit. p. 154.
38LÊNIN, V. I. op. cit. p. 156.
Fonte: http://antesquixote.blogspot.com.br/2010/03/resenha-que-fazer-de-lenin.html