quinta-feira, 1 de maio de 2014

A legalidade socialista e o problema da função do direito na União Soviética.




Fernando Joaquim Ferreira Maia


1. Introdução


O traço fundamental entre a Escola Socialista do Direito e as escolas jurídicas ocidentais é que a primeira coloca o ordenamento jurídico na perspectiva da proteção e a reprodução das relações sociais mais vantajosas à classe dominante, tendo em vista a legitimação dos objetivos sócio-políticos da transição socialista ao comunismo.


Desta forma, observa-se a importância do estudo do ordenamento jurídico russo-soviético, visto que ele conseguiu construir uma escola jurídica original, a socialista, com princípios, valores e institutos próprios, desenvolvendo as estruturas fundamentais do nascente modo-de-produção socialista.

Neste trabalho, analisaremos, brevemente, o princípio fundamental da legalidade socialista e sua repercussão nas funções do direito na União Soviética(URSS), através de uma análise dialética, ancorada no processo de desenvolvimento dos condicionantes históricos e materiais em que a civilização soviética estava inserida.


2. Do princípio da consciência jurídica socialista à afirmação da legalidade socialista como princípio diretor fundamental do ordenamento jurídico russo-soviético

O princípio da consciência jurídica socialista teve influência na formação do ordenamento positivo soviético, bem como na legalidade socialista, esta como núcleo norteador de todo o sistema judicial soviético. Em função disso, é fundamental a sua compreensão para que se entenda o princípio da legalidade e a função do direito nas condições da sociedade soviética.

O princípio da consciência jurídica socialista surgiu com o primeiro Decreto em matéria judiciária publicado pelo Soviete de Comissários do Povo, em 24 de novembro de 1917. Esse Decreto, no seu art. 5º, dizia que os Tribunais locais deveriam resolver os assuntos em nome da República Russa e guiarem-se em suas decisões e julgamentos pelas leis dos governos derrubados, na medida em que estas não tivessem sido revogadas pela Revolução e não fossem contrárias à consciência e ao sentimento do direito revolucionário.

A ruptura com os socialistas-revolucionários possibilitou que as medidas revolucionárias se acentuassem. Uma lei de 30 de novembro de 1918 afirmava que os atos legislativos e regulamentos do Governo dos Sovietes constituíam o único direito escrito e que, na ausência de textos legais, o juiz deveria seguir o seu sentimento socialista de justiça, proibindo-se qualquer referência à legislação do antigo regime (1). Procurava-se construir um direito de novo tipo, com formas peculiares que regulassem e protegessem as novas relações sociais em gestação.

O princípio da legalidade socialista só veio definitivamente ao ordenamento jurídico soviético após o fim da guerra civil em 1921, precisamente com o Decreto de 28 de maio de 1922, que instituiu a Procuradoria, e com a Constituição de 1923.

De fato, o período que vai de 1918 a 1921 foi caracterizado pela preocupação dos dirigentes do Estado em afirmar o poder político, procurando adotar uma posição política justa, consolidando o rumo revolucionário adotado, ao mesmo tempo em que se adotaram medidas rompendo com todo o sistema político-econômico anterior, bem como com as instituições que sobre ele repousavam, pondo todos os meios de produção sob controle total do Estado (2).

Desta forma, todas as leis do antigo regime foram revogadas, tendo validade, num primeiro momento, apenas o ordenamento jurídico anterior que não fosse incompatível com o novo regime. Posteriormente, apenas ao ordenamento jurídico soviético foi reconhecida validade, pelo qual, na ausência de normas positivas, o juiz deveria decidir de acordo com a consciência jurídica socialista (3). Nesta época, a consciência jurídica socialista, considerando o art. 22 da Constituição de 1918 e a ausência de grandes codificações, era, ao lado da norma positiva, a principal fonte do nascente direito socialista.

Em 1921, com o fim da guerra civil, o surgimento de um quadro de correlação internacional adverso ao regime soviético e com a derrota das esperadas revoluções socialistas européias, sobretudo na Hungria e na Alemanha, ficou claro para os dirigentes soviéticos que a edificação da sociedade socialista, a manter-se aquela situação, se daria inicialmente nos marcos da fronteira da União Soviética (4). Ademais, o período do comunismo de guerra não tinha conseguido atender plenamente às necessidades e anseios da população e, à mercê dos colossais recursos naturais existentes na URSS, inexistiam condições objetivas para a construção plena do socialismo (5).

Desta forma, surge, em 1921, uma nova política econômica, denominada NEP, objetivando preparar as condições objetivas para a edificação plena do socialismo, bem como consistindo no restabelecimento de relações capitalistas de produção, em convivência com relações socialistas de produção, sob a direção do Estado.

A perspectiva da transição, e aí compreende-se, em primeiro momento, transição ao socialismo, preparando as condições objetivas e subjetivas para a edificação do socialismo, e, em segundo momento, transição ao comunismo, preparando as condições subjetivas e objetivas à edificação do comunismo, exigia a mobilização e esforço de toda a nação neste sentido, com disciplina e dedicação no cumprimento dos objetivos traçados pelo Estado. Outrossim, exigia-se a institucionalização do poder político, a criação de uma superestrutura ideológica e a regulação das novas relações de produção e leis econômicas. Ao direito cabia isto, sendo da lei o papel de fonte suprema do direito soviético, devendo auxiliar na reprodução e desenvolvimento das novas relações de produção. É justamente desta exigência que surge o princípio da legalidade socialista.

Com o fim da NEP e o início da planificação total da economia, o princípio da legalidade socialista foi alçado à condição de princípio fundamental do direito soviético.


3. Da importância e significado do princípio da legalidade socialista à luz dos condicionantes históricos e materiais da construção do socialismo soviético.


O princípio da legalidade socialista significava que os cidadãos e a administração soviética, na sua conduta, não podiam transgredir a lei, devendo se condicionar e obedecer estritamente às normas positivas (6). Daí que tanto os cidadãos como as empresas do Estado estavam submetidos às normas positivas, devendo os órgãos do Estado encarregados da prestação jurisdicional aplicarem as leis para a solução de lides, excluindo qualquer decisão baseada em eqüidade ou em alguma consideração de ordem não amparada estritamente no ordenamento positivo (7).

Para os soviéticos, o direito expressava a estrutura econômica da sociedade, onde as condições materiais da classe dominante determinavam a sua consciência social, a sua vontade e os seus interesses. O conteúdo socialista do direito e o caráter proletário da democracia soviética legitimavam a obrigação de obedecer às leis (8).

Na URSS, a observância das normas positivas era um imperativo absoluto, visto que o êxito da planificação e desenvolvimento econômico e a organização das forças produtivas dependiam do Estado e interessavam a toda a sociedade, onde as resistências às relações jurídicas eram vistas como uma ofensa à sociedade (9).

A transição socialista ao comunismo, exigia disciplina em relação à consecução dos objetivos desta transição; o respeito à legalidade auxiliava nesta disciplina.

Para os soviéticos, o direito não tinha valor em si, sendo apenas instrumento do Estado, criado por este, a serviço da classe dominante para a consecução das finalidades da transição socialista: o advento do comunismo, com a extinção do Estado e do próprio direito (10). Daí que o ordenamento jurídico soviético tinha caráter provisório, tendo por função principal a organização das forças produtivas e a solidificação dos valores sociais e da nova consciência social, só tendo autoridade nos marcos de uma infraestrutura em que os meios de produção fossem socializados e explorados em benefício da sociedade, tendo a acumulação da riqueza caráter coletivo.  

O princípio da legalidade socialista era assegurado pelo conjunto das instituições soviéticas e pela população, sobretudo pelo acordo dos interesses sociais e individuais assegurados pela socialização dos meios de produção, pela aliança da classe operária com o campesinato na construção da nova sociedade, bem como pela prevalência da acumulação coletiva da riqueza.

Na URSS, o direito exprimia uma ideia de justiça de classe, calcada no choque entre as diversas classes sociais e seus extratos, sendo as normas jurídicas condicionadas pelas contradições no processo de produção de riquezas e seu reflexo no mundo das ideias e na superestrutura ideológica da sociedade, refletindo os interesses da classe social detentora do poder político.

Por fim, o princípio da legalidade elevava a lei escrita como fonte suprema do direito soviético, visto que o marxismo só considerava direito aquelas regras contendo um conjunto de proibições e permissões, dotadas de força coercitiva e impostas pelo Estado; era justamente no contexto social, econômico, político e histórico em que a sociedade estava inserida, à luz da luta de classes, que se desenvolvia a construção do direito. Daí que os Tribunais, tanto no conhecimento original da lide, como na apreciação dos recursos, deveriam, ao proferir a decisão, subordinar seu julgamento à norma positiva.


4. A problemática da função do direito soviético na perspectiva da transição socialista

4.1. A função econômica do ordenamento jurídico


Segundo os juristas soviéticos, o direito era reflexo do processo de produção e da ordem estatal classista sobre este assentada, produzida pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção que, por sua vez, constituíam a base econômica do desenvolvimento social (11). O direito emanava do Estado, tendo por função regular um modo-de-produção determinado, institucionalizar o poder político, bem como reproduzir a ideologia da classe social que detém este poder político, numa sociedade determinada. O direito, então, era uma superestrutura ideológica própria de uma sociedade de classes, reflexo das concepções, necessidades e interesses da classe dominante, marcada por contradições no processo de produção, no qual o Estado era um mecanismo de legitimação dos interesses de uma dada classe social (12).

Na URSS isto não era muito diferente em sua essência, uma vez que, segundo os soviéticos, a aliança operária-camponesa, utilizando o Estado e o direito, exercia o poder político, regulava o modo-de-produção socialista e reproduzia sua ideologia na sociedade, impondo seus interesses perante as outras classes sociais. A extinção do direito e do Estado se daria ao final da transição socialista, com o advento do comunismo. O Estado e o direito não eram vistos como um fim em si mesmos, mas como um meio para a construção da nova sociedade subordinados aos objetivos do Estado socialista (13).

O direito, nas circunstâncias da URSS, assumia uma função econômica.

O direito tinha uma força diferente na sociedade soviética. Esta força era determinada pelos interesses do proletariado, pelos direitos reais e pessoais desta classe, pela luta para consolidar o regime, bem como pela necessidade em auxiliar o desenvolvimento das forças produtivas na sociedade, objetivando consolidar os princípios socialistas na economia e o conjunto das relações sociais, controlando e registrando a produção, a distribuição desta e a quantidade de trabalho e consumo dos membros da sociedade.

Para os soviéticos, a produção de riquezas determinava e condicionava todos os fatores subjetivos na sociedade (14). O direito, neste caso, tinha fundamento nas relações de produção e na divisão social do trabalho, relacionando-se com as classes sociais e com a luta de classes (15). Daí que o direito soviético era instrumento para a regulação e reprodução das relações sociais de produção e leis econômicas do modo-de-produção socialista vigente na URSS (16).

O socialismo não era concebido como um modo-de-produção independente, mas como uma etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo, composta por várias fases de desenvolvimento, em que, gradativamente, iriam se transferir as funções dos órgãos estatais à sociedade, diluindo o poder do Estado até a sua completa extinção, extinguindo o direito; acabar com as diferenças entre as classes, até a extinção destas; acabar com as diferenças entre o trabalho manual e o intelectual, elevar a propriedade social à propriedade comunal, até o predomínio da última; aumentar os meios de produção de base; elevar o nível cultural da população; substituir os valores da antiga sociedade; eliminar a divisão social do trabalho, junto com as diferenças entre o campo e a cidade e as disparidades salariais; extinguir a circulação mercantil e expandir a nova sociedade ao mundo inteiro.

Na perspectiva da edificação da sociedade socialista na URSS, ao direito cumpria ser instrumento do Estado, regulando a transição rumo ao comunismo, principalmente assegurando o cumprimento das metas da planificação e ajustando a sociedade a estas metas, com o fito de colaborar com os objetivos da classe social dominante, dando estabilidade a esta transição. Desta forma, o direito soviético auxiliava na reprodução do regime social e sua base econômica: a economia socialista e a propriedade social e estatal (17), inclusive alicerçando-se na lei econômica da harmonia da produção. Nestas condições, o Estado estabelecia a planificação sobre a qual os trabalhadores organizavam e orientavam suas atividades (18).

Ao admitirem que o direito integrava a superestrutura ideológica da sociedade, repousada sobre o conjunto das forças produtivas, relações de produção e leis econômicas da sociedade, os soviéticos entendiam que o conteúdo do direito era determinado pelo processo de produção de riquezas, refletindo o conteúdo da infraestrutura social em que estava inserido.


4.2. A função educadora-moral do ordenamento jurídico


Conclui-se que, além de uma função econômica, o direito tinha uma função moral e educadora.

Para os soviéticos, o papel educativo do direito consistia em disseminar a ideologia marxista no seio do povo, preparando-o para a ação socialista, bem como combatendo os desvios ideológicos de quaisquer matizes porventura existentes.

O direito, então, era visto como um aspecto da política geral do Estado e, em função da luta de classes prevalecer no socialismo, sobretudo em forma de ideias, já que a nova sociedade herda todo o espólio objetivo e subjetivo da antiga, o direito devia reproduzir a ideologia da classe social detentora do poder político na sociedade socialista: o proletariado.

No regime soviético, ao direito cabia educar os cidadãos no respeito às leis e aos objetivos da Revolução Socialista, politizando-os e os engajando no esforço da transição socialista ao comunismo (19). O papel educativo do direito soviético consistia, também, em disseminar e solidificar os novos valores sociais da sociedade, tais como: o coletivismo, o solidarismo, o altruísmo, a preocupação do homem no engajamento em todos os assuntos da sociedade, a abnegação revolucionária, a procura constante pelo saber, a disciplina, a consciência sobre direitos e deveres, o respeito à legalidade, não em função do caráter coercitivo da norma jurídica, mas em função do asseguramento dos objetivos da Revolução socialista (20). O papel educativo do direito, então, tinha uma importância fundamental na formação da nova consciência social sob o socialismo.

A função educadora do direito soviético, obviamente, se estendia aos seus ramos. Assim sendo, a política e o direito poderão modificar a consciência dos homens e os educar para o pensamento e a ação socialista (21). Desta forma, um dos escopos do direito processual também era o de educar o indivíduo nesta direção.

O direito soviético objetivava a consolidação e disciplina do trabalho, o reforço e o desenvolvimento das políticas públicas, a educação da consciência comunista dos membros da sociedade. O direito tinha caráter coercitivo, forçando a obediência às normas legais. Ao mesmo tempo, as normas do direito ensinavam e reforçavam à população a consciência do direito correspondente para estas normas. A aplicação e o respeito das normas do direito pelos cidadãos estavam garantidos acima de tudo pela persuasão e a educação porque estas normas correspondiam aos interesses objetivos da sociedade. Mas, em todo caso, o direito socialista não perdia seu caráter coercitivo, permanecendo uma ordem imperativa que vinha do Estado. É neste sentido que a lei soviética educava os trabalhadores. O Tribunal que aplicava a lei soviética educava os trabalhadores, sendo um instrumento de educação dos cidadãos.

Todo o sistema jurídico soviético era voltado não só para a positivação das conquistas da população do país, mas fundamentalmente para a efetivação real dessas conquistas. Aqui, procurou-se construir um direito simplificado, objetivo, informal, célere e barato.

O direito soviético também tinha um caráter moral. Esta moral consistia em que a infraestrutura disciplinada pelo direito soviético não era calcada em relações de exploração do homem pelo homem e na apropriação indébita do trabalho alheio, mas calcada na harmonia da produção, na acumulação coletiva da riqueza, na sociedade justa e igualitária, na socialização geral dos meios de produção, no solidarismo e no interesse coletivo, permitindo ao direito transformar a maneira de o homem interpretar o mundo e ver a si mesmo, de estimular o seu sentido social e combater todas as formas de egoísmos e de idéias mesquinhas, de vícios humanos decorrentes da má organização da economia (22).

O direito soviético, portanto, trazia consigo uma nova moral: a moral socialista. Esta era entendida como um sistema de concepções, princípios e normas, assim como de sentimentos e estados de ânimo, pelos quais os homens se guiavam nas relações entre si e para com a sociedade socialista, na vida pessoal e social e na educação da nova geração, fundando-se nas relações de produção e leis econômicas socialistas, refletindo os interesses do proletariado (23). Este entendimento estava ancorado no materialismo marxista que sustenta que o homem, seja consciente ou inconscientemente, recebe suas ideias morais das condições reais em que se baseia sua situação de classe: das relações econômicas em que produz e troca o produzido, não se devendo subestimar a importância das ideias e da ideologia no desenvolvimento da sociedade e da atividade humana (24).

Assim sendo, a função educadora, moral e econômica do direito soviético impunham ao Tribunal não só o dever de vigilância, controle e retificação de decisões, mas o dever de educar os cidadãos na consciência do cumprimento das obrigações e direitos assegurados pela lei.


5. O princípio da legalidade socialista, a função do direito socialista soviético e o caráter da Procuradoria.


O princípio da legalidade socialista adquiria uma função importante, pois na URSS não havia a separação de poderes, sendo o poder estatal concentrado em um único órgão, o Soviete Supremo da URSS, que distribuía suas funções entre órgãos seus, não estando vinculado a princípios que repartissem a sua competência entre diversos órgãos iguais (25).

Assim, o princípio da legalidade guiava as três funções do direito soviético:

1) a função econômica, visando a regular o modo-de-produção socialista e a sua transição rumo ao comunismo, adequando a sociedade às metas da planificação;
2) a função educadora, procurando reproduzir e disseminar a ideologia socialista no seio da população, institucionalizando todos os mecanismos de reprodução da ideologia dominante na sociedade, combatendo, ao mesmo tempo, os desvios ideológicos de toda espécie, condicionando o indivíduo a considerar os fenômenos e ações dos homens e aos homens mesmos do ponto de vista dos interesses do Estado socialista e da edificação da sociedade socialista;
3) a função moral, objetivando a estabelecer uma moral socialista, traduzindo a ideia de justiça do proletariado, suas representações sobre o bem e o mal, refletindo a infra-estrutura socialista.

Havia uma instituição com fundamento exclusivo em garantir o princípio da legalidade socialista e a efetivação das funções do direito na sociedade: a Procuradoria.

A Procuradoria era um órgão autônomo, subordinado apenas ao Soviete Supremo da URSS, que lhe indicava o Procurador-Geral da URSS. Este, por sua vez, indicava os outros Procuradores.

A função da Procuradoria era a de fiscalização geral do respeito a todo o sistema jurídico do país, além de exercer funções típicas do Ministério Público nos países ocidentais, podendo, ainda, requerer a anulação de qualquer ato tomado ilegalmente ou sem a observância de normas legais, bem como tomar medidas para defender as relações jurídicas, porventura resistidas. Assim sendo, a Procuradoria deveria controlar o cumprimento das leis pelo aparato estatal, em sentido amplo, e pelos cidadãos da URSS (26).

O entendimento dos dirigentes soviéticos acerca do papel da Procuradoria, prevalecido durante o período de elaboração do Código Civil da República Federada da Rússia, era de que o Estado deveria intervir nas relações cíveis, nas lides cíveis, considerando-se que não se devia desperdiçar a mínima possibilidade de ampliar a intervenção do Estado nas relações cíveis (27).

Outrossim, na definição das tarefas da Procuradoria, Lênin argumentava que era importante ter em mente que, diferentemente de qualquer poder administrativo, a fiscalização do Procurador carecia de todo poder administrativo e de todo voto decisório em qualquer questão administrativa. O Procurador tinha apenas o direito e a obrigação de fiscalizar a instituição, da compreensão unitária, da legalidade em toda a República, em que pese quaisquer diferenças ou influências locais. O único direito e obrigação do Procurador era entregar um assunto à resolução do Tribunal (28).

A principal razão que sustentava a missão de um Procurador não era a defesa da legalidade em abstrato, senão dos valores superiores que davam vida a essa legalidade; não tanto pela letra da lei, senão quanto ao seu conteúdo ideológico, os valores que dela emanavam. Esta devia incluir, em qualquer caso, a proteção ativa da Constituição e do ordenamento jurídico que esta legitimava. A Procuradoria, como órgão de defesa da legalidade, não aparecia contemplada em sentido geral, senão enquanto atuava na promoção da ação da justiça.

Desta forma, a tarefa da Procuradoria colocava a ideia da legalidade como uma forma específica ou método do poder político. Então, as funções do direito na URSS estavam consubstanciadas na legalidade socialista, pois esta significava estabilidade das relações sociais, respeito às regras de convivência social, respeito e intangibilidade da propriedade social socialista, bem como observância estrita de todas as normas postas pelo Poder Público (29).

Por fim, vale salientar que a legalidade socialista não era uma afirmação do caráter transcendental (superior a todos e a tudo) da lei, sendo uma regra de conduta, organização e disciplina da sociedade, regida pela classe dominante.

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·       1 - Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1957, p. 7-10.

2 - S. N. Bratous, “Les idées de Lenine sur le droit sovietique et la legalité socialiste”. Revue de Droit Contemporain, Bruxelles, no 1, 1970, p. 20-22, 30.

3 - Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1957, p. 7-10.

4 - Luis Fernandes, URSS, ascensão e queda: a economia política da URSS com o mundo capitalista. 2ª ed. São Paulo, Anita Garibaldi, 1992, p. 67-68.

5 - Vladimir Ilitch Lênin, “El impuesto en especie”. Obras completas. Madrid, Akal, 1978, t. XXXV, p. 223.

6 - René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p.202.

7 - René David. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 191.

- A. JA. Vysinskij, “Problemi del diritto e dello Stato in Marx”. Teorie sovietiche del diritto. Milano, Giuffrè, 1964, p. 259-260, 277, 282.

9 - P. Romashkin, “El Estado e el derecho soviéticos en la etapa actual”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p. 22-25, 28.  

10 - Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1957, p. 14, 17.

11 - S. N. Bratous, “Les idées de Lenine sur le droit sovietique et la legalité socialiste”. Revue de Droit Contemporain, Bruxelles, no 1, 1970, p. 21-24.

12 - José Luis Aguilar Gorrondona, “Teoría general del derecho soviético”. Revista da Facultad de Derecho, Maracaibo, nº 16, 1966, p. 61.  

13 - Vladimir Ilitch Lênin, O Estado e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1987, p. 15-20.

14 - Karl Marx; Friedrich Engels, A ideologia alemã. 6ª ed. São Paulo, HUCITEC, 1987, p. 39-40.

15 - Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 102.

16 - José Luis Aguilar Gorrondona, “Teoría general del derecho soviético”. Revista da Facultad de Derecho, Maracaibo, nº 16, 1966, p. 60-64.  

17 - P. Romashkin, “El Estado e el derecho soviéticos en la etapa actual”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p. 20.

18 - V. Kotok, “El derecho constitucional soviético”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p. 46-47.

19 - F. Burlatski, Fundamentos da filosofia marxista-leninista. Moscou, Edições Progresso, 1987, p. 221-224.  

20 - René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p. 244-247.

21 - Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo. 8ª ed. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 20.

22 - René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p. 255-256.  

23 - F. Burlatski, Fundamentos da filosofia marxista-leninista. Moscou, Edições Progresso, 1987, p. 228-231.

24 - Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito, 1957, p. 70.

25 - René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p. 197, 202, 253, 274.  

26 - V. Vlasov; S. Studenikin, “Derecho administrativo soviético”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p. 133.

27 - N. S. Shakarian, “Los participantes en el litigio”. In: M. A. Gurvich (org.), Derecho procesal civil soviético. Ciudad de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1971, p. 110-111.

28 - Idem, p. 111.  

29 - A. JA. Vysinskij, “Problemi del diritto e dello Stato in Marx”. Teorie sovietiche del diritto. Milano, Giuffrè, 1964, p. 253-255.