Fernando
Joaquim Ferreira Maia
1.
Introdução
O
traço fundamental entre a Escola Socialista do Direito e as escolas jurídicas
ocidentais é que a primeira coloca o ordenamento jurídico na perspectiva da
proteção e a reprodução das relações sociais mais vantajosas à classe
dominante, tendo em vista a legitimação dos objetivos sócio-políticos da
transição socialista ao comunismo.
Desta
forma, observa-se a importância do estudo do ordenamento jurídico
russo-soviético, visto que ele conseguiu construir uma escola jurídica
original, a socialista, com princípios, valores e institutos próprios,
desenvolvendo as estruturas fundamentais do nascente modo-de-produção
socialista.
Neste
trabalho, analisaremos, brevemente, o princípio fundamental da legalidade
socialista e sua repercussão nas funções do direito na União Soviética(URSS),
através de uma análise dialética, ancorada no processo de desenvolvimento dos
condicionantes históricos e materiais em que a civilização soviética estava
inserida.
2. Do princípio
da consciência jurídica socialista à afirmação da legalidade socialista como
princípio diretor fundamental do ordenamento jurídico russo-soviético
O
princípio da consciência jurídica socialista teve influência na formação do
ordenamento positivo soviético, bem como na legalidade socialista, esta como
núcleo norteador de todo o sistema judicial soviético. Em função disso, é
fundamental a sua compreensão para que se entenda o princípio da legalidade e a
função do direito nas condições da sociedade soviética.
O
princípio da consciência jurídica socialista surgiu com o primeiro Decreto em
matéria judiciária publicado pelo Soviete de Comissários do Povo, em 24 de
novembro de 1917. Esse Decreto, no seu art. 5º, dizia que os Tribunais locais
deveriam resolver os assuntos em nome da República Russa e guiarem-se em suas
decisões e julgamentos pelas leis dos governos derrubados, na medida em que
estas não tivessem sido revogadas pela Revolução e não fossem contrárias à
consciência e ao sentimento do direito revolucionário.
A
ruptura com os socialistas-revolucionários possibilitou que as medidas
revolucionárias se acentuassem. Uma lei de 30 de novembro de 1918 afirmava que
os atos legislativos e regulamentos do Governo dos Sovietes constituíam o único
direito escrito e que, na ausência de textos legais, o juiz deveria seguir o
seu sentimento socialista de justiça, proibindo-se qualquer referência à
legislação do antigo regime (1). Procurava-se construir um direito de novo
tipo, com formas peculiares que regulassem e protegessem as novas relações
sociais em gestação.
O
princípio da legalidade socialista só veio definitivamente ao ordenamento
jurídico soviético após o fim da guerra civil em 1921, precisamente com o
Decreto de 28 de maio de 1922, que instituiu a Procuradoria, e com a Constituição
de 1923.
De
fato, o período que vai de 1918 a 1921 foi caracterizado pela preocupação dos
dirigentes do Estado em afirmar o poder político, procurando adotar uma posição
política justa, consolidando o rumo revolucionário adotado, ao mesmo tempo em
que se adotaram medidas rompendo com todo o sistema político-econômico
anterior, bem como com as instituições que sobre ele repousavam, pondo todos os
meios de produção sob controle total do Estado (2).
Desta
forma, todas as leis do antigo regime foram revogadas, tendo validade, num
primeiro momento, apenas o ordenamento jurídico anterior que não fosse
incompatível com o novo regime. Posteriormente, apenas ao ordenamento jurídico
soviético foi reconhecida validade, pelo qual, na ausência de normas positivas,
o juiz deveria decidir de acordo com a consciência jurídica socialista (3).
Nesta época, a consciência jurídica socialista, considerando o art. 22 da
Constituição de 1918 e a ausência de grandes codificações, era, ao lado da norma
positiva, a principal fonte do nascente direito socialista.
Em
1921, com o fim da guerra civil, o surgimento de um quadro de correlação
internacional adverso ao regime soviético e com a derrota das esperadas
revoluções socialistas européias, sobretudo na Hungria e na Alemanha, ficou
claro para os dirigentes soviéticos que a edificação da sociedade socialista, a
manter-se aquela situação, se daria inicialmente nos marcos da fronteira da
União Soviética (4). Ademais, o período do comunismo de guerra não tinha
conseguido atender plenamente às necessidades e anseios da população e, à mercê
dos colossais recursos naturais existentes na URSS, inexistiam condições
objetivas para a construção plena do socialismo (5).
Desta
forma, surge, em 1921, uma nova política econômica, denominada NEP, objetivando
preparar as condições objetivas para a edificação plena do socialismo, bem como
consistindo no restabelecimento de relações capitalistas de produção, em
convivência com relações socialistas de produção, sob a direção do Estado.
A
perspectiva da transição, e aí compreende-se, em primeiro momento, transição ao
socialismo, preparando as condições objetivas e subjetivas para a edificação do
socialismo, e, em segundo momento, transição ao comunismo, preparando as
condições subjetivas e objetivas à edificação do comunismo, exigia a
mobilização e esforço de toda a nação neste sentido, com disciplina e dedicação
no cumprimento dos objetivos traçados pelo Estado. Outrossim, exigia-se a
institucionalização do poder político, a criação de uma superestrutura
ideológica e a regulação das novas relações de produção e leis econômicas. Ao
direito cabia isto, sendo da lei o papel de fonte suprema do direito soviético,
devendo auxiliar na reprodução e desenvolvimento das novas relações de produção.
É justamente desta exigência que surge o princípio da legalidade socialista.
Com
o fim da NEP e o início da planificação total da economia, o princípio da
legalidade socialista foi alçado à condição de princípio fundamental do direito
soviético.
3.
Da importância e significado do princípio da legalidade socialista à luz dos
condicionantes históricos e materiais da construção do socialismo soviético.
O
princípio da legalidade socialista significava que os cidadãos e a
administração soviética, na sua conduta, não podiam transgredir a lei, devendo
se condicionar e obedecer estritamente às normas positivas (6). Daí que tanto
os cidadãos como as empresas do Estado estavam submetidos às normas positivas,
devendo os órgãos do Estado encarregados da prestação jurisdicional aplicarem
as leis para a solução de lides, excluindo qualquer decisão baseada em eqüidade
ou em alguma consideração de ordem não amparada estritamente no ordenamento
positivo (7).
Para
os soviéticos, o direito expressava a estrutura econômica da sociedade, onde as
condições materiais da classe dominante determinavam a sua consciência social,
a sua vontade e os seus interesses. O conteúdo socialista do direito e o
caráter proletário da democracia soviética legitimavam a obrigação de obedecer
às leis (8).
Na
URSS, a observância das normas positivas era um imperativo absoluto, visto que
o êxito da planificação e desenvolvimento econômico e a organização das forças
produtivas dependiam do Estado e interessavam a toda a sociedade, onde as
resistências às relações jurídicas eram vistas como uma ofensa à sociedade (9).
A
transição socialista ao comunismo, exigia disciplina em relação à consecução
dos objetivos desta transição; o respeito à legalidade auxiliava nesta
disciplina.
Para
os soviéticos, o direito não tinha valor em si, sendo apenas instrumento do
Estado, criado por este, a serviço da classe dominante para a consecução das
finalidades da transição socialista: o advento do comunismo, com a extinção do
Estado e do próprio direito (10). Daí que o ordenamento jurídico soviético
tinha caráter provisório, tendo por função principal a organização das forças
produtivas e a solidificação dos valores sociais e da nova consciência social,
só tendo autoridade nos marcos de uma infraestrutura em que os meios de
produção fossem socializados e explorados em benefício da sociedade, tendo a
acumulação da riqueza caráter coletivo.
O
princípio da legalidade socialista era assegurado pelo conjunto das
instituições soviéticas e pela população, sobretudo pelo acordo dos interesses
sociais e individuais assegurados pela socialização dos meios de produção, pela
aliança da classe operária com o campesinato na construção da nova sociedade,
bem como pela prevalência da acumulação coletiva da riqueza.
Na
URSS, o direito exprimia uma ideia de justiça de classe, calcada no choque
entre as diversas classes sociais e seus extratos, sendo as normas jurídicas
condicionadas pelas contradições no processo de produção de riquezas e seu
reflexo no mundo das ideias e na superestrutura ideológica da sociedade,
refletindo os interesses da classe social detentora do poder político.
Por
fim, o princípio da legalidade elevava a lei escrita como fonte suprema do
direito soviético, visto que o marxismo só considerava direito aquelas regras
contendo um conjunto de proibições e permissões, dotadas de força coercitiva e
impostas pelo Estado; era justamente no contexto social, econômico, político e
histórico em que a sociedade estava inserida, à luz da luta de classes, que se
desenvolvia a construção do direito. Daí que os Tribunais, tanto no conhecimento
original da lide, como na apreciação dos recursos, deveriam, ao proferir a
decisão, subordinar seu julgamento à norma positiva.
4. A problemática da função do direito soviético na perspectiva da transição socialista
4.1. A função econômica do ordenamento
jurídico
Segundo
os juristas soviéticos, o direito era reflexo do processo de produção e da
ordem estatal classista sobre este assentada, produzida pelo desenvolvimento
das forças produtivas e das relações de produção que, por sua vez, constituíam
a base econômica do desenvolvimento social (11). O direito emanava do Estado,
tendo por função regular um modo-de-produção determinado, institucionalizar o
poder político, bem como reproduzir a ideologia da classe social que detém este
poder político, numa sociedade determinada. O direito, então, era uma
superestrutura ideológica própria de uma sociedade de classes, reflexo das
concepções, necessidades e interesses da classe dominante, marcada por
contradições no processo de produção, no qual o Estado era um mecanismo de
legitimação dos interesses de uma dada classe social (12).
Na
URSS isto não era muito diferente em sua essência, uma vez que, segundo os
soviéticos, a aliança operária-camponesa, utilizando o Estado e o direito,
exercia o poder político, regulava o modo-de-produção socialista e reproduzia
sua ideologia na sociedade, impondo seus interesses perante as outras classes
sociais. A extinção do direito e do Estado se daria ao final da transição
socialista, com o advento do comunismo. O Estado e o direito não eram vistos
como um fim em si mesmos, mas como um meio para a construção da nova sociedade
subordinados aos objetivos do Estado socialista (13).
O
direito, nas circunstâncias da URSS, assumia uma função econômica.
O
direito tinha uma força diferente na sociedade soviética. Esta força era
determinada pelos interesses do proletariado, pelos direitos reais e pessoais
desta classe, pela luta para consolidar o regime, bem como pela necessidade em
auxiliar o desenvolvimento das forças produtivas na sociedade, objetivando
consolidar os princípios socialistas na economia e o conjunto das relações
sociais, controlando e registrando a produção, a distribuição desta e a
quantidade de trabalho e consumo dos membros da sociedade.
Para
os soviéticos, a produção de riquezas determinava e condicionava todos os
fatores subjetivos na sociedade (14). O direito, neste caso, tinha fundamento
nas relações de produção e na divisão social do trabalho, relacionando-se com
as classes sociais e com a luta de classes (15). Daí que o direito soviético era
instrumento para a regulação e reprodução das relações sociais de produção e
leis econômicas do modo-de-produção socialista vigente na URSS (16).
O
socialismo não era concebido como um modo-de-produção independente, mas como
uma etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo, composta por várias
fases de desenvolvimento, em que, gradativamente, iriam se transferir as
funções dos órgãos estatais à sociedade, diluindo o poder do Estado até a sua
completa extinção, extinguindo o direito; acabar com as diferenças entre as
classes, até a extinção destas; acabar com as diferenças entre o trabalho
manual e o intelectual, elevar a propriedade social à propriedade comunal, até
o predomínio da última; aumentar os meios de produção de base; elevar o nível
cultural da população; substituir os valores da antiga sociedade; eliminar a
divisão social do trabalho, junto com as diferenças entre o campo e a cidade e
as disparidades salariais; extinguir a circulação mercantil e expandir a nova
sociedade ao mundo inteiro.
Na
perspectiva da edificação da sociedade socialista na URSS, ao direito cumpria
ser instrumento do Estado, regulando a transição rumo ao comunismo,
principalmente assegurando o cumprimento das metas da planificação e ajustando
a sociedade a estas metas, com o fito de colaborar com os objetivos da classe
social dominante, dando estabilidade a esta transição. Desta forma, o direito
soviético auxiliava na reprodução do regime social e sua base econômica: a
economia socialista e a propriedade social e estatal (17), inclusive
alicerçando-se na lei econômica da harmonia da produção. Nestas condições, o
Estado estabelecia a planificação sobre a qual os trabalhadores organizavam e
orientavam suas atividades (18).
Ao
admitirem que o direito integrava a superestrutura ideológica da sociedade,
repousada sobre o conjunto das forças produtivas, relações de produção e leis
econômicas da sociedade, os soviéticos entendiam que o conteúdo do direito era
determinado pelo processo de produção de riquezas, refletindo o conteúdo da
infraestrutura social em que estava inserido.
4.2. A função educadora-moral do
ordenamento jurídico
Conclui-se
que, além de uma função econômica, o direito tinha uma função moral e
educadora.
Para
os soviéticos, o papel educativo do direito consistia em disseminar a ideologia
marxista no seio do povo, preparando-o para a ação socialista, bem como
combatendo os desvios ideológicos de quaisquer matizes porventura existentes.
O
direito, então, era visto como um aspecto da política geral do Estado e, em
função da luta de classes prevalecer no socialismo, sobretudo em forma de ideias,
já que a nova sociedade herda todo o espólio objetivo e subjetivo da antiga, o
direito devia reproduzir a ideologia da classe social detentora do poder
político na sociedade socialista: o proletariado.
No
regime soviético, ao direito cabia educar os cidadãos no respeito às leis e aos
objetivos da Revolução Socialista, politizando-os e os engajando no esforço da
transição socialista ao comunismo (19). O papel educativo do direito soviético
consistia, também, em disseminar e solidificar os novos valores sociais da
sociedade, tais como: o coletivismo, o solidarismo, o altruísmo, a preocupação
do homem no engajamento em todos os assuntos da sociedade, a abnegação
revolucionária, a procura constante pelo saber, a disciplina, a consciência
sobre direitos e deveres, o respeito à legalidade, não em função do caráter
coercitivo da norma jurídica, mas em função do asseguramento dos objetivos da
Revolução socialista (20). O papel educativo do direito, então, tinha uma
importância fundamental na formação da nova consciência social sob o
socialismo.
A
função educadora do direito soviético, obviamente, se estendia aos seus ramos.
Assim sendo, a política e o direito poderão modificar a consciência dos homens
e os educar para o pensamento e a ação socialista (21). Desta forma, um dos
escopos do direito processual também era o de educar o indivíduo nesta direção.
O
direito soviético objetivava a consolidação e disciplina do trabalho, o reforço
e o desenvolvimento das políticas públicas, a educação da consciência comunista
dos membros da sociedade. O direito tinha caráter coercitivo, forçando a
obediência às normas legais. Ao mesmo tempo, as normas do direito ensinavam e
reforçavam à população a consciência do direito correspondente para estas normas.
A aplicação e o respeito das normas do direito pelos cidadãos estavam
garantidos acima de tudo pela persuasão e a educação porque estas normas
correspondiam aos interesses objetivos da sociedade. Mas, em todo caso, o
direito socialista não perdia seu caráter coercitivo, permanecendo uma ordem
imperativa que vinha do Estado. É neste sentido que a lei soviética educava os
trabalhadores. O Tribunal que aplicava a lei soviética educava os
trabalhadores, sendo um instrumento de educação dos cidadãos.
Todo
o sistema jurídico soviético era voltado não só para a positivação das
conquistas da população do país, mas fundamentalmente para a efetivação real
dessas conquistas. Aqui, procurou-se construir um direito simplificado,
objetivo, informal, célere e barato.
O
direito soviético também tinha um caráter moral. Esta moral consistia em que a
infraestrutura disciplinada pelo direito soviético não era calcada em relações
de exploração do homem pelo homem e na apropriação indébita do trabalho alheio,
mas calcada na harmonia da produção, na acumulação coletiva da riqueza, na
sociedade justa e igualitária, na socialização geral dos meios de produção, no
solidarismo e no interesse coletivo, permitindo ao direito transformar a
maneira de o homem interpretar o mundo e ver a si mesmo, de estimular o seu
sentido social e combater todas as formas de egoísmos e de idéias mesquinhas,
de vícios humanos decorrentes da má organização da economia (22).
O
direito soviético, portanto, trazia consigo uma nova moral: a moral socialista.
Esta era entendida como um sistema de concepções, princípios e normas, assim
como de sentimentos e estados de ânimo, pelos quais os homens se guiavam nas
relações entre si e para com a sociedade socialista, na vida pessoal e social e
na educação da nova geração, fundando-se nas relações de produção e leis
econômicas socialistas, refletindo os interesses do proletariado (23). Este
entendimento estava ancorado no materialismo marxista que sustenta que o homem,
seja consciente ou inconscientemente, recebe suas ideias morais das condições
reais em que se baseia sua situação de classe: das relações econômicas em que
produz e troca o produzido, não se devendo subestimar a importância das ideias
e da ideologia no desenvolvimento da sociedade e da atividade humana (24).
Assim
sendo, a função educadora, moral e econômica do direito soviético impunham ao
Tribunal não só o dever de vigilância, controle e retificação de decisões, mas
o dever de educar os cidadãos na consciência do cumprimento das obrigações e
direitos assegurados pela lei.
5. O princípio da legalidade socialista,
a função do direito socialista soviético e o caráter da Procuradoria.
O
princípio da legalidade socialista adquiria uma função importante, pois na URSS
não havia a separação de poderes, sendo o poder estatal concentrado em um único
órgão, o Soviete Supremo da URSS, que distribuía suas funções entre órgãos
seus, não estando vinculado a princípios que repartissem a sua competência
entre diversos órgãos iguais (25).
Assim,
o princípio da legalidade guiava as três funções do direito soviético:
1) a
função econômica, visando a regular o modo-de-produção socialista e a sua
transição rumo ao comunismo, adequando a sociedade às metas da planificação;
2) a função educadora, procurando reproduzir e
disseminar a ideologia socialista no seio da população, institucionalizando
todos os mecanismos de reprodução da ideologia dominante na sociedade,
combatendo, ao mesmo tempo, os desvios ideológicos de toda espécie,
condicionando o indivíduo a considerar os fenômenos e ações dos homens e aos
homens mesmos do ponto de vista dos interesses do Estado socialista e da
edificação da sociedade socialista;
3) a
função moral, objetivando a estabelecer uma moral socialista, traduzindo a ideia
de justiça do proletariado, suas representações sobre o bem e o mal, refletindo
a infra-estrutura socialista.
Havia
uma instituição com fundamento exclusivo em garantir o princípio da legalidade
socialista e a efetivação das funções do direito na sociedade: a Procuradoria.
A
Procuradoria era um órgão autônomo, subordinado apenas ao Soviete Supremo da
URSS, que lhe indicava o Procurador-Geral da URSS. Este, por sua vez, indicava
os outros Procuradores.
A
função da Procuradoria era a de fiscalização geral do respeito a todo o sistema
jurídico do país, além de exercer funções típicas do Ministério Público nos
países ocidentais, podendo, ainda, requerer a anulação de qualquer ato tomado
ilegalmente ou sem a observância de normas legais, bem como tomar medidas para
defender as relações jurídicas, porventura resistidas. Assim sendo, a
Procuradoria deveria controlar o cumprimento das leis pelo aparato estatal, em
sentido amplo, e pelos cidadãos da URSS (26).
O
entendimento dos dirigentes soviéticos acerca do papel da Procuradoria,
prevalecido durante o período de elaboração do Código Civil da República
Federada da Rússia, era de que o Estado deveria intervir nas relações cíveis,
nas lides cíveis, considerando-se que não se devia desperdiçar a mínima
possibilidade de ampliar a intervenção do Estado nas relações cíveis (27).
Outrossim,
na definição das tarefas da Procuradoria, Lênin argumentava que era importante
ter em mente que, diferentemente de qualquer poder administrativo, a
fiscalização do Procurador carecia de todo poder administrativo e de todo voto
decisório em qualquer questão administrativa. O Procurador tinha apenas o
direito e a obrigação de fiscalizar a instituição, da compreensão unitária, da
legalidade em toda a República, em que pese quaisquer diferenças ou influências
locais. O único direito e obrigação do Procurador era entregar um assunto à
resolução do Tribunal (28).
A
principal razão que sustentava a missão de um Procurador não era a defesa da
legalidade em abstrato, senão dos valores superiores que davam vida a essa
legalidade; não tanto pela letra da lei, senão quanto ao seu conteúdo
ideológico, os valores que dela emanavam. Esta devia incluir, em qualquer caso,
a proteção ativa da Constituição e do ordenamento jurídico que esta legitimava.
A Procuradoria, como órgão de defesa da legalidade, não aparecia contemplada em
sentido geral, senão enquanto atuava na promoção da ação da justiça.
Desta
forma, a tarefa da Procuradoria colocava a ideia da legalidade como uma forma
específica ou método do poder político. Então, as funções do direito na URSS
estavam consubstanciadas na legalidade socialista, pois esta significava
estabilidade das relações sociais, respeito às regras de convivência social,
respeito e intangibilidade da propriedade social socialista, bem como
observância estrita de todas as normas postas pelo Poder Público (29).
Por
fim, vale salientar que a legalidade socialista não era uma afirmação do
caráter transcendental (superior a todos e a tudo) da lei, sendo uma regra de
conduta, organização e disciplina da sociedade, regida pela classe dominante.
__________________________________________________________
· 1
- Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro,
Editora Nacional de Direito, 1957, p. 7-10.
2
- S. N. Bratous, “Les idées de Lenine sur le droit sovietique et la legalité
socialiste”. Revue de Droit Contemporain, Bruxelles, no 1, 1970, p. 20-22, 30.
3
- Andrei Vishinski, A prova judicial no direito soviético. Rio de Janeiro,
Editora Nacional de Direito, 1957, p. 7-10.
4
- Luis Fernandes, URSS, ascensão e queda: a economia política da URSS com o
mundo capitalista. 2ª ed. São Paulo, Anita Garibaldi, 1992, p. 67-68.
5
- Vladimir Ilitch Lênin, “El impuesto en especie”. Obras completas. Madrid,
Akal, 1978, t. XXXV, p. 223.
6 - René David; Jonh Hazard, El
derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p.202.
7 - René David. Os grandes
sistemas de direito contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998,
p. 191.
- A. JA. Vysinskij, “Problemi del
diritto e dello Stato in Marx”. Teorie sovietiche del diritto. Milano,
Giuffrè, 1964, p. 259-260, 277, 282.
9
- P. Romashkin, “El Estado e el derecho soviéticos en la etapa actual”. In: P.
Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en
Lenguas Extranjeras, 1962, p. 22-25, 28.
10 - Andrei Vishinski, A prova
judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito,
1957, p. 14, 17.
11 - S. N. Bratous, “Les idées de
Lenine sur le droit sovietique et la legalité socialiste”. Revue de Droit
Contemporain, Bruxelles, no 1, 1970, p. 21-24.
12
- José Luis Aguilar Gorrondona, “Teoría general del derecho soviético”. Revista
da Facultad de Derecho, Maracaibo, nº 16, 1966, p. 61.
13 - Vladimir Ilitch Lênin, O
Estado e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1987, p. 15-20.
14 - Karl Marx; Friedrich Engels, A
ideologia alemã. 6ª ed. São Paulo, HUCITEC, 1987, p. 39-40.
15 - Nicos Poulantzas, O Estado,
o poder, o socialismo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 102.
16
- José Luis Aguilar Gorrondona, “Teoría general del derecho soviético”. Revista
da Facultad de Derecho, Maracaibo, nº 16, 1966, p. 60-64.
17
- P. Romashkin, “El Estado e el derecho soviéticos en la etapa actual”. In: P.
Romashkin (org.), Fundamentos del derecho soviético. Moscú, Ediciones en
Lenguas Extranjeras, 1962, p. 20.
18 - V. Kotok, “El derecho
constitucional soviético”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos del
derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p. 46-47.
19
- F. Burlatski, Fundamentos da filosofia marxista-leninista. Moscou,
Edições Progresso, 1987, p. 221-224.
20 - René David; Jonh Hazard, El
derecho soviético. Buenos Aires, La Ley, 1964, v.1, p. 244-247.
21 - Cândido Rangel Dinamarco, A
instrumentalidade do processo. 8ª ed. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 20.
22
- René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley,
1964, v.1, p. 255-256.
23 - F. Burlatski, Fundamentos
da filosofia marxista-leninista. Moscou, Edições Progresso, 1987, p.
228-231.
24 - Andrei Vishinski, A prova
judicial no direito soviético. Rio de Janeiro, Editora Nacional de Direito,
1957, p. 70.
25
- René David; Jonh Hazard, El derecho soviético. Buenos Aires, La Ley,
1964, v.1, p. 197, 202, 253, 274.
26 - V. Vlasov; S. Studenikin,
“Derecho administrativo soviético”. In: P. Romashkin (org.), Fundamentos
del derecho soviético. Moscú, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1962, p.
133.
27 - N. S. Shakarian, “Los
participantes en el litigio”. In: M. A. Gurvich (org.), Derecho procesal
civil soviético. Ciudad de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas,
1971, p. 110-111.
28
- Idem, p. 111.
29
- A. JA. Vysinskij, “Problemi del diritto e dello Stato in Marx”. Teorie sovietiche
del diritto. Milano, Giuffrè, 1964, p. 253-255.