O tema do Estado de direito
voltou a ganhar excepcional atualidade nas últimas duas décadas do nosso
século. Porquê? Perguntar-se-á naturalmente. E a pergunta é tanto mais incômoda
e justificada quanto mais diversificadas e contraditórias forem as causas da
ressurreição e ressurgimento do problema do Estado de direito.
Para facilitarmos a compreensão
da complicada gênese do Estado de direito avançaremos com uma caracterização
simples, pois, como sempre, as caracterizações mais simples tomam-se mais
impressivas. Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização
político-estadual cuja atividade é determinada e limitada pelo Direito.
"Estado de não direito" será, pelo contrário, aquele em que o poder
político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos
indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito. Este
modo abstrato de aproximação aos conceitos de "Estado de direito" e
de "Estado de não direito" pouco adiantará ao direito, pouco adiantará
às pessoas menos familiarizadas com os temas do "Estado" e do
"Direito". Avancemos então por um caminho mais assente na terra para
se tomar a sério o Estado de direito. Tomar a sério o Estado de direito
implica, desde logo, recortar com rigor razoável o seu contrário o "Estado
de não direito". Três ideias bastam para o caracterizar:
É um Estado que decreta leis
arbitrárias, cruéis ou desumanas;
É um Estado em que o direito se
identifica com a "razão do Estado" imposta e iluminada por
"chefes";
É um Estado pautado por radical
injustiça e desigualdade na aplicação do direito.
Explicitemos melhor estas três
ideias. "Estado de não direito" é aquele em que existem leis
arbitrárias, cruéis e desumanas que fazem da força ou do exercício abusivo do
poder o direito, deixando sem qualquer defesa jurídica eficaz o indivíduo, os
cidadãos, os povos e as minorias. Lei arbitrária, cruel e desumana é, por
exemplo, aquela que permite experiências científicas impostas exclusivamente a
indivíduos de outras raças, de outras nacionalidades, de outras línguas e de
outras religiões.
"Estado de não direito"
─ eis a segunda ideia básica ─ é aquele que identifica o direito com a
"razão do Estado", com o "bem do povo", com a
"utilidade política", autoritária ou totalitariamente impostos. O
"direito" é tudo ─ mas não mais do que isso ─ o que os
"chefes", o "partido", a "falange", decretarem
como politicamente correto. Facilmente se intuem as consequências trágicas
desta identificação do direito com uma hipotética "utilidade social"
ou com uma abstrata razão de Estado. A "razão de Estado" ─ com este
ou com outros nomes, como, por exemplo, "amizade do povo", "bem
da nação", "imperativos da revolução", "interesses
superiores do Estado" ─ justificou campos de concentração, pavilhões
psiquiátricos e mesmo genocídios coletivos para os adversários políticos ou
para os povos a que estes pertencem. O "bem do povo" e os
"interesses do Estado" são (e foram) invocados a torto e a direito
para dar cobertura a privilégios de classes dirigentes, insinuando-se a escandalosa
identificação dos interesses das castas político-governantes com o bem comum
dos cidadãos.
Retomemos a terceira ideia: a da
radical injustiça e da flagrante desigualdade na aplicação do direito. Nos
"Estados de não direito" há dois pesos e duas medidas na aplicação
das normas jurídicas (leis) consoante as pessoas em causa. Um ato idêntico é
sancionado criminalmente com penas desumanas se praticado por adversários
políticos, mas merece o encobrimento ou até o beneplácito político quando seja
cometido por um correligionário ou por elementos das polícias secretas contra o
outro, seja ele um simples adversário político, um idealista defensor dos
direitos humanos ou um lutador pela democracia.
De uma forma quase intuitiva, o
leitor sabe o que não é um Estado de direito. É aquele _ repita-se_ em que as
leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se fazerem
obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito
mesmo as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o
capricho dos déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses
de classe se impõem com violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a
pessoas ou grupos de pessoas os direitos inalienáveis dos indivíduos e dos
povos.
Como se poderá deduzir das
considerações antecedentes, não basta a existência de leis menos justas ou de
leis publicamente contestadas através de movimentos de desobediência civil ou
de gestos de indignação para, de forma automática, se apodar uma organização
política de Estado de não direito. Sendo assim, perguntar-se-á: a partir de que
limite as leis e medidas injustas transportam maldade suficientemente intensa
para que sejam legítimas as suspeitas de um Estado de não direito? Avançaremos uma
fórmula sintética. Atingir-se-á o "ponto do não direito" quando a
contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de
justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal
modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há
senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e
arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao
dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a
justiça e o direito ─ o direito de resistência. individual e coletivo.
Fonte:
http://www.libertarianismo.org/livros/jjgcoedd.pdf