terça-feira, 29 de abril de 2014

"Estado de Direito" e "Estado de Não Direito"




Joaquim José Gomes Canotilho

  
O tema do Estado de direito voltou a ganhar excepcional atualidade nas últimas duas décadas do nosso século. Porquê? Perguntar-se-á naturalmente. E a pergunta é tanto mais incômoda e justificada quanto mais diversificadas e contraditórias forem as causas da ressurreição e ressurgimento do problema do Estado de direito.


Para facilitarmos a compreensão da complicada gênese do Estado de direito avançaremos com uma caracterização simples, pois, como sempre, as caracterizações mais simples tomam-se mais impressivas. Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estadual cuja atividade é determinada e limitada pelo Direito. "Estado de não direito" será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito. Este modo abstrato de aproximação aos conceitos de "Estado de direito" e de "Estado de não direito" pouco adiantará ao direito, pouco adiantará às pessoas menos familiarizadas com os temas do "Estado" e do "Direito". Avancemos então por um caminho mais assente na terra para se tomar a sério o Estado de direito. Tomar a sério o Estado de direito implica, desde logo, recortar com rigor razoável o seu contrário o "Estado de não direito". Três ideias bastam para o caracterizar:

É um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis ou desumanas;
É um Estado em que o direito se identifica com a "razão do Estado" imposta e iluminada por "chefes";
É um Estado pautado por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito.

Explicitemos melhor estas três ideias. "Estado de não direito" é aquele em que existem leis arbitrárias, cruéis e desumanas que fazem da força ou do exercício abusivo do poder o direito, deixando sem qualquer defesa jurídica eficaz o indivíduo, os cidadãos, os povos e as minorias. Lei arbitrária, cruel e desumana é, por exemplo, aquela que permite experiências científicas impostas exclusivamente a indivíduos de outras raças, de outras nacionalidades, de outras línguas e de outras religiões.

"Estado de não direito" ─ eis a segunda ideia básica ─ é aquele que identifica o direito com a "razão do Estado", com o "bem do povo", com a "utilidade política", autoritária ou totalitariamente impostos. O "direito" é tudo ─ mas não mais do que isso ─ o que os "chefes", o "partido", a "falange", decretarem como politicamente correto. Facilmente se intuem as consequências trágicas desta identificação do direito com uma hipotética "utilidade social" ou com uma abstrata razão de Estado. A "razão de Estado" ─ com este ou com outros nomes, como, por exemplo, "amizade do povo", "bem da nação", "imperativos da revolução", "interesses superiores do Estado" ─ justificou campos de concentração, pavilhões psiquiátricos e mesmo genocídios coletivos para os adversários políticos ou para os povos a que estes pertencem. O "bem do povo" e os "interesses do Estado" são (e foram) invocados a torto e a direito para dar cobertura a privilégios de classes dirigentes, insinuando-se a escandalosa identificação dos interesses das castas político-governantes com o bem comum dos cidadãos.

Retomemos a terceira ideia: a da radical injustiça e da flagrante desigualdade na aplicação do direito. Nos "Estados de não direito" há dois pesos e duas medidas na aplicação das normas jurídicas (leis) consoante as pessoas em causa. Um ato idêntico é sancionado criminalmente com penas desumanas se praticado por adversários políticos, mas merece o encobrimento ou até o beneplácito político quando seja cometido por um correligionário ou por elementos das polícias secretas contra o outro, seja ele um simples adversário político, um idealista defensor dos direitos humanos ou um lutador pela democracia.

De uma forma quase intuitiva, o leitor sabe o que não é um Estado de direito. É aquele _ repita-se_ em que as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se fazerem obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito mesmo as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o capricho dos déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses de classe se impõem com violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a pessoas ou grupos de pessoas os direitos inalienáveis dos indivíduos e dos povos.

Como se poderá deduzir das considerações antecedentes, não basta a existência de leis menos justas ou de leis publicamente contestadas através de movimentos de desobediência civil ou de gestos de indignação para, de forma automática, se apodar uma organização política de Estado de não direito. Sendo assim, perguntar-se-á: a partir de que limite as leis e medidas injustas transportam maldade suficientemente intensa para que sejam legítimas as suspeitas de um Estado de não direito? Avançaremos uma fórmula sintética. Atingir-se-á o "ponto do não direito" quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justiça e o direito ─ o direito de resistência. individual e coletivo.





Fonte: http://www.libertarianismo.org/livros/jjgcoedd.pdf