Por Amom R. Morais*
Psicologia
de grupo a serviço do consumismo
No início do século vinte as
teorias de Sigmund Freud começam a ganhar notoriedade nos círculos acadêmicos e
na sociedade de modo geral, pelo caráter polêmico de suas descobertas a
respeito da natureza do funcionamento da mente humana. A maior descoberta da
psicanálise foi sua noção de inconsciente e sua implicação nos comportamentos
individuais e também grupais. Mas essas noções de instintos ou pulsões que a
consciência humana desconheceria não foram rapidamente aceitas pelos círculos
de intelectuais e por outros segmentos da sociedade facilmente. Haja vista,
pelos típicos processos de constituição dos laços sociais da época, moralmente
orientados pelas regras puritanas, mais precisamente do período vitoriano. Para
uma sociedade europeia impulsionada pelo confiança no progresso da modernidade
a teoria freudiana causava escândalo pela introdução de uma dimensão irracional
e ilógica que perpassaria o humano, de modo a denunciar a impotência e o engano
do senhorio da razão absoluta, controladora e esclarecida, herdada do
iluminismo.
No entanto, a obra de Freud se
constituiria ao longo do tempo em grande referência no estudo da psicologia
profunda. As suas ideias fizeram um grande sucesso nos Estados unidos, disseminadas
primeiramente por seu sobrinho Edward Bernays que foi considerado o pai das
Relações Públicas e grande influente da propaganda. Barnays, como um grande estrategista do
marketing que trabalhava para importantes corporações na década de 1920/30, faria
utilização da descoberta sobre a psicologia de grupo de seu tio Freud, para
manipulação dos consumidores no mercado capitalista em ascensão.
Nessa empreitada, a atividade de
propaganda iria ter que partir de uma nova concepção influenciada pelas noções
da psicanálise, qual seja, a de indivíduos guiados pela irracionalidade e por
conseguinte, potenciais manipulados. Portanto, essa era a tarefa da propaganda,
utilizar de recursos e instrumentos que moldasse e direcionasse o inconsciente
das pessoas para o consumo de mercadorias. Foi nesse objetivo, que Barnays se
utilizou de modo pragmático e utilitarista de textos de Freud para se apropriar
da ideia de como se constitui a psicologia de grupo e a partir disso propor
formas de manipulação das massas.
Freud inicialmente em seu texto “Psicologia
das massas e análise do eu” propõe que o interesse dessa psicologia é o indivíduo entendido como membro de uma raça, de uma nação, de instituições, ou
como parte de uma multidão de pessoas que se organizam em grupo (Freud, 2011). Desse modo, fica claro que o indivíduo será
sempre visto estando inserido em determinado agrupamento ou núcleo de socialização
onde o foco de estudo seria a análise do eu e de seu funcionamento quando se está
participando do compartilhamento das vivências de um grupo.
Logo na
introdução, Freud retoma a descrição da mente grupal feita por Gustave Le Bon. Para este, os indivíduos por
mais diferentes que fossem em vários aspectos, uma vez aglomerados em um grupo,
passariam a compartilhar uma espécie de mente coletiva que os faz sentir,
pensar e agir de maneira muito diferente, daquela da qual cada membro dele, tomado
individualmente sentiria ou agiria caso estivesse só. O que ele queria dizer é
que certas ideias e sentimentos não se transformam em atos efetivos quando os
indivíduos estão na condição de isolamento, mas sim quando se formam os grupos.
Le Bon tinha em mente que os grupos
eram formações que despertavam nos indivíduos aspectos sociamente barrados, ou
seja, as formações grupais para ele possuía uma identificação com a mente
primitiva. Na condição de pertencente a um grupo o individuo adquire um
sentimento de poder invencível que lhe permitiria despertar instintos que
isoladamente teria reprimido. A responsabilidade que sempre controla o sujeito
frente à normatividade social desapareceria (Freud, 2011). A irracionalidade
seria predominante nas pessoas vinculadas fortemente a grupos, elas não
possuiriam capacidade crítica e reflexiva deixando o grupo sempre aberto a
influencias devido a seu caráter demasiadamente crédulo.
Ademais, os sentimentos nos grupos
são geralmente simples e excessivos, dessa forma, “o grupo só pode ser excitado
por um estímulo excessivo, quem quer que deseje produzir efeito sobre ele não
necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas coisas
mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes” (Freud. p.49,
2011). Esta nos parece uma ótima fórmula para uma estratégia de disseminação de
propaganda de mercadorias. E foi exatamente a partir dessas concepções que uma
certa doutrina econômica, a saber, o liberalismo de mercado, pensaria o
indivíduo humano. Nas chamadas sociedade de massas, as teorias políticas e
econômicas da ordem capitalista, partiria do princípio que as pessoas
massificadas, tanto na produção quanto no consumo, se comportariam de maneira
irracional, egoísta e utilitarista, e esses seriam os atributos da própria
natureza humana.
Foi nesse bojo, de apropriação e
distorção da psicanálise a um fim perverso que Barnays e toda a corja das
relações públicas revolucionaram o mundo da propaganda a serviço das grandes
corporações. Estas, temiam a super produção de mercadorias em um contexto de
acumulação em grande escala, por isso o consumo deveria de todas as formas ser
impulsionado.
E como sempre, a produção do
conhecimento científico guiada pelo signo do pragmatismo instrumental estava
mais uma vez envolvida nos estudos dos grupos através da psicanálise que
contribuiu para ascensão do eu na sociedade de consumo. O resultado da produção
e manipulação de desejos inconscientes foi uma atomização generalizada da
sociedade. Cada membro dela vivendo na falsa ideia de liberdade do seu próprio
eu que era expresso pela marca que usava. Além do valor utilitário das
mercadorias elas eram agora consumidas pela ideia, pelo status quo e pelo
sentimento que elas passavam às pessoas. O aspecto do valor de uso das
mercadorias estava sendo gradativamente substituído pela hegemonia do valor de
troca o que instaurava a necessidade da obsolescência programada dos bens de
consumo duráveis afim, de acelerar o ritmo do consumo de modo a acompanhar as
mudanças no processo produtivo. Por essas e outras razões a psicologia de grupo
necessitava de constantes pesquisas empíricas a respeito das condições
psicológicas do funcionamento dos grupos. Apesar de estudar as pessoas
necessariamente vinculadas a grupos, as conclusões oriundas da psicanálise da
propaganda eram individualistas e profundamente ideológicas, pois esse era o objetivo
do liberalismo de mercado, vender a ideia da satisfação individual e alcançar a
felicidade expressa na mercadoria. Esse era o “sonho americano”.
O sonho que veio a ser abalado pela
crise de 1929, que foi um desastre econômico, e pela emergência do totalitarismo
fascista na Europa, o que representou uma ameaça à ideia de liberdade tão cara
à “América”. O fascismo, juntamente com os resultados catastróficos da segunda
guerra mundial foram condições para se repensar o perigo contido nas massas, já
destacado pelas ideias de Le Bon anteriormente. A ideia da irracionalidade
bárbara das massas mais uma vez corroborava e legitimava a necessidade de
proteger o sacrossanto ideal de liberdade individualista.
A massa fascista e a dessublimação
repressiva
Assim como a ideologia do liberalismo
individualista pode ser compreendida a partir da distorção das Ideias de Freud,
elas também podem nos fornecer uma interpretação do lado anverso do
liberalismo, qual seja, o fascismo. A
propósito do fenômeno totalitário fascista algumas considerações da psicanálise
se fazem significativas. Freud já havia dito, para além das concepções de Le
Bon, que o indivíduo dentro de um grupo está sujeito a profundas alterações das
atividades mentais. Sua submissão à emoção torna-se intensa. Duas
características dos fenômenos sociais podem ser descritas como a sugestão mutua
entre os indivíduos e o prestígio pelos líderes. Freud acrescenta mais um
elemento importante, qual seja, a libido. A libido, segundo ele, é a energia, a
qual expressa, aqueles instintos que tem a ver com tudo que pode ser abrangido
pela palavra amor (Freud, 2011).
Dessa forma, Freud parte da suposição de
que as relações amorosas constituem também a essência da mente grupal. Pode-se
falar então que a essência de um grupo reside nos laços libidinais contidos
nele. Esses laços libidinais são explicados por um processo chamado de
identificação, descoberto por Freud na dinâmica de socialização do complexo de
Édipo. A identificação é uma expressão de um laço emocional com outra pessoa. E
como a pesquisa psicanalítica revelou, a identificação sempre possui uma
dimensão de ambivalência sentimental. E este tipo de identificação está
presente nas formações grupais, baseada num importante laço emocional comum, e
essa mesma qualidade comum pode estar presente na relação com o líder. Mas como
nos indica a presença da ambivalência, existe implicitamente uma mistura de
sentimentos opostos no laço emocional com a pessoa identificada. Amor e ódio,
simpatia e antipatia, por exemplo, co-existem nas relações intersubjetivas.
No entanto, nas formações grupais,
e de modo especial nas massas fascistas, a totalidade da intolerância e de
outros sentimentos negativos se desvanecem. Pois bem, nessas espécies de grupos,
os seus indivíduos comportam-se como se fossem uniformes, toleram
idiossincrasias e peculiaridades dos outros membros de modo a formar um todo
homogênio. Na massa fascista, se dá uma limitação no narcisismo, existe a
persuasão do auto- sacrifício em prol do ideal coletivo e do Estado. Desse
modo, os laços libidinais que sustentam as relações grupais são fortes e dão a
impressão de uma massa coesa e orgânica. Além disso, há o amor idealizado pelo líder
e essa idealização vai substituir o ideal do eu, e o objeto amado é super
investido libidinalmente em detrimento da depreciação do eu. Em formações
grupais como essas, um certo número de indivíduos colocam em um só e mesmo objeto
no lugar do seu ideal do eu e por consequência se identificam uns com os outros
em seu ego (Freud, 2011).
Ainda dentro dessa abordagem
teórica, o fenômeno grupal será entendido como tributário da sugestão. Tendo em
vista que a libido perpassa as relações intersubjetivas no grupo, a sugestão se
dará por via de uma sedução por vínculo erótico, especialmente pela figura do
líder, o qual vem a ser o ideal do grupo. Para Freud, o líder ainda é o temido
pai primevo da horda, e as relações de submissão pela autoridade exercida pelo
líder, remonta a aspectos das pulsões inconscientes. Sendo assim, os indivíduos
impulsionados pela sugestão irão substituir o ideal do eu pelo ideal do grupo,
tal como é corporificado pelo líder, dessa maneira a massa psicológica é a
reunião de indivíduos que introduziram uma mesma pessoa no supereu. Sabe-se que
o ideal do eu é uma parte do supereu, tendo como ponto de referência um ideal
narcísico que impõe uma série de exigências, isto é, o ideal do eu abrange
todas as limitações a que o ego deve se submeter e por essa mesma razão, quando
se prescinde do ideal do eu, configura-se necessariamente para o ego um
festival de satisfação consigo próprio. Portanto, podemos observar que a
estrutura libidinal das grupos fascistas é essencialmente coerciva, mas de um
modo estranho, onde a repressão parece satisfazer anseios inconscientes.
Posto isto, essa aparente
reconciliação entre repressão e inconsciente, observadas na massa fascista,
remete ao que a Teoria crítica da Escola de Frankfurt queria apreender através
do conceito de “dessublimação repressiva” que foi utilizado de início
exatamente para compreender as sociedades totalitárias e que consistia na
possibilidade de instrumentalização direta das moções pulsionais sem
recalcamento. Tal processo, foi fruto de um contexto histórico onde o eu foi
reduzido e não seria mais capaz de mediar as exigências pulsionais do isso e o princípio de realidade (Safatle,
2007). Nesse sentido, não haveria mais necessidade de uma sublimação das
pulsões pela repressão, e sim, um efeito contrário, com a remoção da barreira
do recalque a dessublimação era possível, mas apenas sob uma forte repressão
instrumentalizada para um fim particular, mascarado de universal e perverso. Uma
espécie de expropriação do inconsciente pelos dispositivos de controle social
estava acontecendo no totalitarismo. Os líderes políticos se apropriavam do
inconsciente da massa e direcionava, inclusive através da propaganda, para os
fins do programa fascista.
O que essa análise realizada
inicialmente por Adorno e Marcuse permitia, era deslocar essa mesma crítica atribuída
às sociedades totalitárias para as sociedades liberais. A grande ironia era que
o mesmo conceito de dessublimação repressiva serviria para sociedades com
estruturas ideológicas aparentemente opostas. Devemos lembrar como Marcuse
concebe a expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito
entre princípio de prazer e principio de realidade através de uma satisfação
administrada. Quer dizer, estava ocorrendo uma liberalização controlada que
realçava a satisfação obtida com aquilo que a sociedade estava oferecendo,
assim, com a integração da esfera da sexualidade com o campo dos negócios e do
entretenimento a própria repressão era recalcada. (Marcuse, 1996 citado por
Safatle, 2007). O contexto, no qual Marcuse escreve tal crítica era a sociedade
liberal de consumo de massa. Portanto, a dessublimação repressiva não se
restringia apenas ao fascismo, mas se encaixaria na estrutura libidinal do pós
68, época dos protestos contestatórios da sociedade hierarquizada, da lógica de
consumo, e sobretudo, da liberação sexual hedonista, pois este foi o grande
legado da “contra cultura”. O resultado último das revoltas do final da década
de 1960 foi a cooptação das insatisfações e sua transformação em um novo
individualismo, liberado das antigas estruturas burocráticas tradicionais.
O imperativo do gozo
Ocorre que a psicanálise no início
do século vinte, em especial os estudiosos da psicologia dos grupos, distorcida
por muitos teóricos e marketeiros, utilizou-se de recursos ideológicos para a
manipulação das moções inconscientes contribuindo com a emergência de um falso
ego autêntico. Mas em certa medida, o estilo de vida “americano” centrado no eu
puro e feliz iria ser colocado em xeque pela crítica da “contra cultura” que
postularia formas alternativas de sociabilidade. No entanto, como alguns
pensadores da psicanálise mais crítica estavam observando, os revoltados
histéricos ganharam um novo mestre, não mais repressivo que os impediam de se
expressaram livremente de todas as formas possíveis. Pelo contrário, as novas
injunções eram da obrigação de satisfazer seu próprio desejo. Este tipo de
estrutura libidinal configura o que Lacan conceituou como Imperativo do gozo.
Na elaboração teórica de Lacan a tradicional definição de supereu é invertida,
ao invés de impor limites às gratificações do prazer, o verdadeiro imperativo
superegóico seria o Goza! A esta inversão se deve ao próprio cenário sócio
econômico da construção do edifício teórico lacaniano, em que os processos de
socialização não estavam mais pautados na repressão da ética protestante e do
acúmulo pela renúncia do gozo. Os processos de socialização na
contemporaneidade do consumo desenfreado sofrem mudanças em função da
organização dos processos produtivos e do trabalho.
A reestruturação produtiva do
capital impõe um novo padrão de acumulação, qual seja, uma acumulação flexível,
uma infinidade de produtos devem ser produzidos e consumidos de modo efêmero
para atender a demanda do ritmo acelerado do Just in time. Agora não se tem
mais os estoques de mercadorias, tudo o que é produzido será em um número
limitado de maneira a acompanhar a mudança perene das formas mercadorias que
precisam da mudança constante da produção do desejo pulando de objeto a objeto.
Mas há um problema com o imperativo do
gozo, pois ele não pode ser satisfeito em razão da indeterminação formal da
injunção do supereu. Ele não possui conteúdo normativo específico, não diz como
gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo. Ou seja, estamos diante de um
supereu conciliado com a sociedade marcada exatamente pela obsolescência
programada e pelo fluxo constante de satisfação e insatisfação (Safatle, 2007).
Esta não é uma sociedade de apenas adaptação às normas e estereótipos de
consumo, mas sim também de transgressão das normas e padrões. Passamos da
sociedade da satisfação administrada para a sociedade da insatisfação
administrada, na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo
veiculadas pelo sistema econômico de mercado. Pois bem, passividade e revolta
se combinam porque ao mesmo tempo em que se aceita resignadamente a ordem
vigente pode-se insurgir de modo espetacular contra essa mesma ordem, e assim,
a insatisfação também torna-se mercadoria.
Das massas revoltosas à formação da
Multidão
Pensando assim, talvez possamos compreender
a relação entre Estado e sociedade nos dias atuais. Se pegarmos o exemplo dos
protestos de junho no Brasil sob a ótica da psicologia de grupo freudiana,
poderemos compreendê-las do ponto de vista clássico e vulgar como massa
irracional que saiu às ruas por um certo contágio de sugestão e pela sensação
de potência oriunda do agregado coletivo unido e forte. E que em algumas vezes
veio a se comportar de maneira violenta, como nos lembra as ideias de Le Bon.
Entretanto, a violência tão
polemizada nas mídias pode aparecer como resultado, tanto de uma tática esclarecida
ideologicamente de certos grupos, como fruto de explosões irracionais dispersas
que não escondem nenhum sentido ou interpretação por trás. Elas conotam uma
negatividade de passagem ao ato, totalmente vazio, uma recusa não simbolizada a
um impasse real. E esse impasse é marcado pelo escândalo da incompreensão
das forças legais do Estado, as quais respondem com polícia um problema que é
político. Portanto, a violência como ato vazio está correlacionada a uma forma
política vazia, decadente e que exige inerentemente sua própria superação.
Uma outra leitura a respeito dos
protestos de modo geral ainda seria possível, a de que uma gama ampla de insatisfações
vieram a se condensar nas ruas em razão de uma sistema político associado a uma
estrutura econômica que favorece as inconsistências das garantias dos serviços
públicos. As revoltas poderiam ser compreendidas como estando inseridas no
contexto da insatisfação administrada, agora não só pelo sistema de mercadorias,
mas também pelo sistema político. A desconfiança generalizada na representação
democrática indica que o próprio modelo está esgotado, mais ainda assim, como
faz o sistema econômico, ele pode tirar proveito de alguma forma das
transgressões, estas que acabam se tornando um excesso constitutivo da própria
ordem contestada. Uma das formas de se tirar proveito da transgressão vigiada
ou administrada é utilizar da neutralização do seu potencial transformador,
favorecida pela condição da posição subjetiva das “massas” que é capaz de
sustentar identificações socialmente disponibilizadas ao mesmo tempo em que
ironiza toda e qualquer determinidade. Ou seja, ao mesmo tempo em que um certo
grupo ou sujeito está identificado com uma causa, em outro momento não pode
mais estar devido a fluidez de discursos e às indeterminações próprias do campo sócio econômico e do trabalho. A própria
característica da heterogeneidade das identificações sociais e políticas que
são fluidas dão um caráter amorfo para os grupos contestatórios, algo similar à
lógica da descartabilidade de mercado.
Talvez uma terceira via, agora
mais otimista, para conceber o fenômeno das manifestações fosse possível. Para
além da compreensão ideológica depreciativa proporcionada pelas ideias de Le
Bon, de que os indivíduos agindo em grupo são irracionais e facilmente
manipulados, Freud faz algumas considerações importantes no sentido de que a
despeito da sugestão, os grupos são capazes de realizações sob forma de
abnegação, desprendimento e devoção ao um ideal, ao passo que os indivíduos
isolados, o interesse pessoal é quase a única força motivadora (Freud, 2011).
Ou seja, nas formações grupais há a possibilidade de romper e superar o
individualismo liberal arraigado por séculos de bombardeamento ideológico em
nossas cabeças, pois não se trata de natureza ou essência humana egoísta e utilitarista.
Nesse sentido, psicanalistas como Lacan, já insistira que a inteligibilidade da
dinâmica pulsional dos sujeitos não está vinculada à lógica polar do prazer/desprazer
(Safatle,2007). Freud, ainda ressalta que a experiência demonstrou que nos
casos de colaboração se formam laços libidinais entre os companheiros de
trabalho, os quais prolongam e solidificam a relação entre eles até um ponto
além do que é simplesmente lucrativo. Isto é, não é a satisfação pessoal ou
narcísica que está em jogo em todas as relações intersubjetivas, mas como Freud
mesmo disse, no desenvolvimento da humanidade só o amor, ou a libido atua como
fator civilizador, no sentido de modificar o egoísmo em altruísmo.
A partir dessa dimensão colaborativa e
solidária contida nas formações grupais elucidada por Freud, nós podemos
recorrer à noção de multidão proposta por Antônio Negri, como substituta do
conceito de massa. A multidão é um conjunto de singularidades, as quais formam
uma subjetividade que não aceita mais as tradicionais formas de representação,
por se tratarem de multiplicidades irredutíveis a uma unidade como massa
(unidade de medida do capital) e de povo (correlato da soberania). Estas
singularidades se auto organizam em variadas formas de rede de trabalho cooperativas
entre si, numa reciprocidade colaborativa, são produtoras de novas relações
sociais, expressam maneiras criativas de luta e de organização e se reinventam
a partir da recusa, inconsciente ou não, dos inconsistentes modelos de normatividade
vigentes. Ela é marcada pela
heterogeneidade de tipos sociais, compostas por várias tribos, por ideologias
diferentes, mas cooperativas entre si, e o trabalho imaterial, simbólico e até
intelectual é outra traço marcante na multidão. Com efeito, ela aparece como
uma tendência que exige cada vez mais a reflexão e uso do espaço e dos bens
comuns, (i)materiais, e sobretudo do uso público da razão na disseminação do
conhecimento e do saber que também é um bem comum.
Por essa perspectiva deve-se encarar as
manifestações e protestos recorrentes no país, a despeito de várias críticas. Perspectivas que por sua vez, comprova o potencial emancipador dos agrupamentos humanos e dos movimentos
sociais, entendidos como uma condição fundamental de possibilidade de
reconhecimento de sofrimentos comuns e de objetivos e ideais elevados também
partilhados entre os sujeitos, afim de superar coletivamente o aprisionamento
na bolha solipsista do nosso pequeno e condenado mundo reificado.
*Amom
Rodrigues de Morais, bacharel em psicologia pela Universidade Federal de Goiás,
regional Catalão.
Referencias:
Curtis, Adam. The
Century of the sel; BBC 2002. Documentário.
Freud, Sigmund. Psicologia das Massas e análise do
Eu e outros textos. Obras completas, volume 15. Companhia Das
Letras (2011).
Negri,
Antônio. Para uma definição ontológica da
Multidão. Revista Lugar comum. Nº19-20. pp 15-26
Safatle,
Vladimir. Por uma crítica da economia
libidinal. Artigo, PDF, 2007.