sexta-feira, 16 de maio de 2014

Hegemonia liberal e formação das massas: considerações sobre psicologia de grupo e a política



Por Amom R. Morais*





Psicologia de grupo a serviço do consumismo

           No início do século vinte as teorias de Sigmund Freud começam a ganhar notoriedade nos círculos acadêmicos e na sociedade de modo geral, pelo caráter polêmico de suas descobertas a respeito da natureza do funcionamento da mente humana. A maior descoberta da psicanálise foi sua noção de inconsciente e sua implicação nos comportamentos individuais e também grupais. Mas essas noções de instintos ou pulsões que a consciência humana desconheceria não foram rapidamente aceitas pelos círculos de intelectuais e por outros segmentos da sociedade facilmente. Haja vista, pelos típicos processos de constituição dos laços sociais da época, moralmente orientados pelas regras puritanas, mais precisamente do período vitoriano.   Para uma sociedade europeia impulsionada pelo confiança no progresso da modernidade a teoria freudiana causava escândalo pela introdução de uma dimensão irracional e ilógica que perpassaria o humano, de modo a denunciar a impotência e o engano do senhorio da razão absoluta, controladora e esclarecida, herdada do iluminismo. 

         No entanto, a obra de Freud se constituiria ao longo do tempo em grande referência no estudo da psicologia profunda. As suas ideias fizeram um grande sucesso nos Estados unidos, disseminadas primeiramente por seu sobrinho Edward Bernays que foi considerado o pai das Relações Públicas e grande influente da propaganda.  Barnays, como um grande estrategista do marketing que trabalhava para importantes corporações na década de 1920/30, faria utilização da descoberta sobre a psicologia de grupo de seu tio Freud, para manipulação dos consumidores no mercado capitalista em ascensão.
           
           Nessa empreitada, a atividade de propaganda iria ter que partir de uma nova concepção influenciada pelas noções da psicanálise, qual seja, a de indivíduos guiados pela irracionalidade e por conseguinte, potenciais manipulados. Portanto, essa era a tarefa da propaganda, utilizar de recursos e instrumentos que moldasse e direcionasse o inconsciente das pessoas para o consumo de mercadorias. Foi nesse objetivo, que Barnays se utilizou de modo pragmático e utilitarista de textos de Freud para se apropriar da ideia de como se constitui a psicologia de grupo e a partir disso propor formas de manipulação das massas.
          
          Freud inicialmente em seu texto “Psicologia das massas e análise do eu” propõe que o interesse dessa psicologia é o indivíduo entendido como membro de uma raça, de uma nação, de instituições, ou como parte de uma multidão de pessoas que se organizam em grupo (Freud, 2011).  Desse modo, fica claro que o indivíduo será sempre visto estando inserido em determinado agrupamento ou núcleo de socialização onde o foco de estudo seria a análise do eu e de seu funcionamento quando se está participando do compartilhamento das vivências de um grupo.
           
           Logo na introdução, Freud retoma a descrição da mente grupal feita por  Gustave Le Bon. Para este, os indivíduos por mais diferentes que fossem em vários aspectos, uma vez aglomerados em um grupo, passariam a compartilhar uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente, daquela da qual cada membro dele, tomado individualmente sentiria ou agiria caso estivesse só. O que ele queria dizer é que certas ideias e sentimentos não se transformam em atos efetivos quando os indivíduos estão na condição de isolamento, mas sim quando se formam os grupos.
        
        Le Bon tinha em mente que os grupos eram formações que despertavam nos indivíduos aspectos sociamente barrados, ou seja, as formações grupais para ele possuía uma identificação com a mente primitiva. Na condição de pertencente a um grupo o individuo adquire um sentimento de poder invencível que lhe permitiria despertar instintos que isoladamente teria reprimido. A responsabilidade que sempre controla o sujeito frente à normatividade social desapareceria (Freud, 2011). A irracionalidade seria predominante nas pessoas vinculadas fortemente a grupos, elas não possuiriam capacidade crítica e reflexiva deixando o grupo sempre aberto a influencias devido a seu caráter demasiadamente crédulo.
           
         Ademais, os sentimentos nos grupos são geralmente simples e excessivos, dessa forma, “o grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo, quem quer que deseje produzir efeito sobre ele não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas coisas mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes” (Freud. p.49, 2011). Esta nos parece uma ótima fórmula para uma estratégia de disseminação de propaganda de mercadorias. E foi exatamente a partir dessas concepções que uma certa doutrina econômica, a saber, o liberalismo de mercado, pensaria o indivíduo humano. Nas chamadas sociedade de massas, as teorias políticas e econômicas da ordem capitalista, partiria do princípio que as pessoas massificadas, tanto na produção quanto no consumo, se comportariam de maneira irracional, egoísta e utilitarista, e esses seriam os atributos da própria natureza humana.
         
        Foi nesse bojo, de apropriação e distorção da psicanálise a um fim perverso que Barnays e toda a corja das relações públicas revolucionaram o mundo da propaganda a serviço das grandes corporações. Estas, temiam a super produção de mercadorias em um contexto de acumulação em grande escala, por isso o consumo deveria de todas as formas ser impulsionado.
         
        E como sempre, a produção do conhecimento científico guiada pelo signo do pragmatismo instrumental estava mais uma vez envolvida nos estudos dos grupos através da psicanálise que contribuiu para ascensão do eu na sociedade de consumo. O resultado da produção e manipulação de desejos inconscientes foi uma atomização generalizada da sociedade. Cada membro dela vivendo na falsa ideia de liberdade do seu próprio eu que era expresso pela marca que usava. Além do valor utilitário das mercadorias elas eram agora consumidas pela ideia, pelo status quo e pelo sentimento que elas passavam às pessoas. O aspecto do valor de uso das mercadorias estava sendo gradativamente substituído pela hegemonia do valor de troca o que instaurava a necessidade da obsolescência programada dos bens de consumo duráveis afim, de acelerar o ritmo do consumo de modo a acompanhar as mudanças no processo produtivo. Por essas e outras razões a psicologia de grupo necessitava de constantes pesquisas empíricas a respeito das condições psicológicas do funcionamento dos grupos. Apesar de estudar as pessoas necessariamente vinculadas a grupos, as conclusões oriundas da psicanálise da propaganda eram individualistas e profundamente ideológicas, pois esse era o objetivo do liberalismo de mercado, vender a ideia da satisfação individual e alcançar a felicidade expressa na mercadoria. Esse era o “sonho americano”.
        
         O sonho que veio a ser abalado pela crise de 1929, que foi um desastre econômico, e pela emergência do totalitarismo fascista na Europa, o que representou uma ameaça à ideia de liberdade tão cara à “América”. O fascismo, juntamente com os resultados catastróficos da segunda guerra mundial foram condições para se repensar o perigo contido nas massas, já destacado pelas ideias de Le Bon anteriormente. A ideia da irracionalidade bárbara das massas mais uma vez corroborava e legitimava a necessidade de proteger o sacrossanto ideal de liberdade individualista.

A massa fascista e a dessublimação repressiva

          Assim como a ideologia do liberalismo individualista pode ser compreendida a partir da distorção das Ideias de Freud, elas também podem nos fornecer uma interpretação do lado anverso do liberalismo, qual seja, o fascismo.  A propósito do fenômeno totalitário fascista algumas considerações da psicanálise se fazem significativas. Freud já havia dito, para além das concepções de Le Bon, que o indivíduo dentro de um grupo está sujeito a profundas alterações das atividades mentais. Sua submissão à emoção torna-se intensa. Duas características dos fenômenos sociais podem ser descritas como a sugestão mutua entre os indivíduos e o prestígio pelos líderes. Freud acrescenta mais um elemento importante, qual seja, a libido. A libido, segundo ele, é a energia, a qual expressa, aqueles instintos que tem a ver com tudo que pode ser abrangido pela palavra amor (Freud, 2011).
           
          Dessa forma, Freud parte da suposição de que as relações amorosas constituem também a essência da mente grupal. Pode-se falar então que a essência de um grupo reside nos laços libidinais contidos nele. Esses laços libidinais são explicados por um processo chamado de identificação, descoberto por Freud na dinâmica de socialização do complexo de Édipo. A identificação é uma expressão de um laço emocional com outra pessoa. E como a pesquisa psicanalítica revelou, a identificação sempre possui uma dimensão de ambivalência sentimental. E este tipo de identificação está presente nas formações grupais, baseada num importante laço emocional comum, e essa mesma qualidade comum pode estar presente na relação com o líder. Mas como nos indica a presença da ambivalência, existe implicitamente uma mistura de sentimentos opostos no laço emocional com a pessoa identificada. Amor e ódio, simpatia e antipatia, por exemplo, co-existem nas relações intersubjetivas.
        
        No entanto, nas formações grupais, e de modo especial nas massas fascistas, a totalidade da intolerância e de outros sentimentos negativos se desvanecem. Pois bem, nessas espécies de grupos, os seus indivíduos comportam-se como se fossem uniformes, toleram idiossincrasias e peculiaridades dos outros membros de modo a formar um todo homogênio. Na massa fascista, se dá uma limitação no narcisismo, existe a persuasão do auto- sacrifício em prol do ideal coletivo e do Estado. Desse modo, os laços libidinais que sustentam as relações grupais são fortes e dão a impressão de uma massa coesa e orgânica. Além disso, há o amor idealizado pelo líder e essa idealização vai substituir o ideal do eu, e o objeto amado é super investido libidinalmente em detrimento da depreciação do eu. Em formações grupais como essas, um certo número de indivíduos colocam em um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal do eu e por consequência se identificam uns com os outros em seu ego (Freud, 2011).
         
          Ainda dentro dessa abordagem teórica, o fenômeno grupal será entendido como tributário da sugestão. Tendo em vista que a libido perpassa as relações intersubjetivas no grupo, a sugestão se dará por via de uma sedução por vínculo erótico, especialmente pela figura do líder, o qual vem a ser o ideal do grupo. Para Freud, o líder ainda é o temido pai primevo da horda, e as relações de submissão pela autoridade exercida pelo líder, remonta a aspectos das pulsões inconscientes. Sendo assim, os indivíduos impulsionados pela sugestão irão substituir o ideal do eu pelo ideal do grupo, tal como é corporificado pelo líder, dessa maneira a massa psicológica é a reunião de indivíduos que introduziram uma mesma pessoa no supereu. Sabe-se que o ideal do eu é uma parte do supereu, tendo como ponto de referência um ideal narcísico que impõe uma série de exigências, isto é, o ideal do eu abrange todas as limitações a que o ego deve se submeter e por essa mesma razão, quando se prescinde do ideal do eu, configura-se necessariamente para o ego um festival de satisfação consigo próprio. Portanto, podemos observar que a estrutura libidinal das grupos fascistas é essencialmente coerciva, mas de um modo estranho, onde a repressão parece satisfazer anseios inconscientes.
       
           Posto isto, essa aparente reconciliação entre repressão e inconsciente, observadas na massa fascista, remete ao que a Teoria crítica da Escola de Frankfurt queria apreender através do conceito de “dessublimação repressiva” que foi utilizado de início exatamente para compreender as sociedades totalitárias e que consistia na possibilidade de instrumentalização direta das moções pulsionais sem recalcamento. Tal processo, foi fruto de um contexto histórico onde o eu foi reduzido e não seria mais capaz de mediar as exigências pulsionais  do isso e o princípio de realidade (Safatle, 2007). Nesse sentido, não haveria mais necessidade de uma sublimação das pulsões pela repressão, e sim, um efeito contrário, com a remoção da barreira do recalque a dessublimação era possível, mas apenas sob uma forte repressão instrumentalizada para um fim particular, mascarado de universal e perverso. Uma espécie de expropriação do inconsciente pelos dispositivos de controle social estava acontecendo no totalitarismo. Os líderes políticos se apropriavam do inconsciente da massa e direcionava, inclusive através da propaganda, para os fins do programa fascista.
      
        O que essa análise realizada inicialmente por Adorno e Marcuse permitia, era deslocar essa mesma crítica atribuída às sociedades totalitárias para as sociedades liberais. A grande ironia era que o mesmo conceito de dessublimação repressiva serviria para sociedades com estruturas ideológicas aparentemente opostas. Devemos lembrar como Marcuse concebe a expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito entre princípio de prazer e principio de realidade através de uma satisfação administrada. Quer dizer, estava ocorrendo uma liberalização controlada que realçava a satisfação obtida com aquilo que a sociedade estava oferecendo, assim, com a integração da esfera da sexualidade com o campo dos negócios e do entretenimento a própria repressão era recalcada. (Marcuse, 1996 citado por Safatle, 2007). O contexto, no qual Marcuse escreve tal crítica era a sociedade liberal de consumo de massa. Portanto, a dessublimação repressiva não se restringia apenas ao fascismo, mas se encaixaria na estrutura libidinal do pós 68, época dos protestos contestatórios da sociedade hierarquizada, da lógica de consumo, e sobretudo, da liberação sexual hedonista, pois este foi o grande legado da “contra cultura”. O resultado último das revoltas do final da década de 1960 foi a cooptação das insatisfações e sua transformação em um novo individualismo, liberado das antigas estruturas burocráticas tradicionais.



O imperativo do gozo

            Ocorre que a psicanálise no início do século vinte, em especial os estudiosos da psicologia dos grupos, distorcida por muitos teóricos e marketeiros, utilizou-se de recursos ideológicos para a manipulação das moções inconscientes contribuindo com a emergência de um falso ego autêntico. Mas em certa medida, o estilo de vida “americano” centrado no eu puro e feliz iria ser colocado em xeque pela crítica da “contra cultura” que postularia formas alternativas de sociabilidade. No entanto, como alguns pensadores da psicanálise mais crítica estavam observando, os revoltados histéricos ganharam um novo mestre, não mais repressivo que os impediam de se expressaram livremente de todas as formas possíveis. Pelo contrário, as novas injunções eram da obrigação de satisfazer seu próprio desejo. Este tipo de estrutura libidinal configura o que Lacan conceituou como Imperativo do gozo. Na elaboração teórica de Lacan a tradicional definição de supereu é invertida, ao invés de impor limites às gratificações do prazer, o verdadeiro imperativo superegóico seria o Goza! A esta inversão se deve ao próprio cenário sócio econômico da construção do edifício teórico lacaniano, em que os processos de socialização não estavam mais pautados na repressão da ética protestante e do acúmulo pela renúncia do gozo. Os processos de socialização na contemporaneidade do consumo desenfreado sofrem mudanças em função da organização dos processos produtivos e do trabalho.
  
          A reestruturação produtiva do capital impõe um novo padrão de acumulação, qual seja, uma acumulação flexível, uma infinidade de produtos devem ser produzidos e consumidos de modo efêmero para atender a demanda do ritmo acelerado do Just in time. Agora não se tem mais os estoques de mercadorias, tudo o que é produzido será em um número limitado de maneira a acompanhar a mudança perene das formas mercadorias que precisam da mudança constante da produção do desejo pulando de objeto a objeto.
           
           Mas há um problema com o imperativo do gozo, pois ele não pode ser satisfeito em razão da indeterminação formal da injunção do supereu. Ele não possui conteúdo normativo específico, não diz como gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo. Ou seja, estamos diante de um supereu conciliado com a sociedade marcada exatamente pela obsolescência programada e pelo fluxo constante de satisfação e insatisfação (Safatle, 2007). Esta não é uma sociedade de apenas adaptação às normas e estereótipos de consumo, mas sim também de transgressão das normas e padrões. Passamos da sociedade da satisfação administrada para a sociedade da insatisfação administrada, na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema econômico de mercado. Pois bem, passividade e revolta se combinam porque ao mesmo tempo em que se aceita resignadamente a ordem vigente pode-se insurgir de modo espetacular contra essa mesma ordem, e assim, a insatisfação também torna-se mercadoria.



Das massas revoltosas à formação da Multidão

            Pensando assim, talvez possamos compreender a relação entre Estado e sociedade nos dias atuais. Se pegarmos o exemplo dos protestos de junho no Brasil sob a ótica da psicologia de grupo freudiana, poderemos compreendê-las do ponto de vista clássico e vulgar como massa irracional que saiu às ruas por um certo contágio de sugestão e pela sensação de potência oriunda do agregado coletivo unido e forte. E que em algumas vezes veio a se comportar de maneira violenta, como nos lembra as ideias de Le Bon.
           
            Entretanto, a violência tão polemizada nas mídias pode aparecer como resultado, tanto de uma tática esclarecida ideologicamente de certos grupos, como fruto de explosões irracionais dispersas que não escondem nenhum sentido ou interpretação por trás. Elas conotam uma negatividade de passagem ao ato, totalmente vazio, uma recusa não simbolizada a um impasse real. E esse impasse é marcado pelo escândalo da incompreensão das forças legais do Estado, as quais respondem com polícia um problema que é político. Portanto, a violência como ato vazio está correlacionada a uma forma política vazia, decadente e que exige inerentemente sua própria superação.    
           
            Uma outra leitura a respeito dos protestos de modo geral ainda seria possível,  a de que uma gama ampla de insatisfações vieram a se condensar nas ruas em razão de uma sistema político associado a uma estrutura econômica que favorece as inconsistências das garantias dos serviços públicos. As revoltas poderiam ser compreendidas como estando inseridas no contexto da insatisfação administrada, agora não só pelo sistema de mercadorias, mas também pelo sistema político. A desconfiança generalizada na representação democrática indica que o próprio modelo está esgotado, mais ainda assim, como faz o sistema econômico, ele pode tirar proveito de alguma forma das transgressões, estas que acabam se tornando um excesso constitutivo da própria ordem contestada. Uma das formas de se tirar proveito da transgressão vigiada ou administrada é utilizar da neutralização do seu potencial transformador, favorecida pela condição da posição subjetiva das “massas” que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas ao mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade. Ou seja, ao mesmo tempo em que um certo grupo ou sujeito está identificado com uma causa, em outro momento não pode mais estar devido a fluidez de discursos e às indeterminações próprias do campo sócio econômico e do trabalho.  A própria característica da heterogeneidade das identificações sociais e políticas que são fluidas dão um caráter amorfo para os grupos contestatórios, algo similar à lógica da descartabilidade de mercado.



             Talvez uma terceira via, agora mais otimista, para conceber o fenômeno das manifestações fosse possível. Para além da compreensão ideológica depreciativa proporcionada pelas ideias de Le Bon, de que os indivíduos agindo em grupo são irracionais e facilmente manipulados, Freud faz algumas considerações importantes no sentido de que a despeito da sugestão, os grupos são capazes de realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção ao um ideal, ao passo que os indivíduos isolados, o interesse pessoal é quase a única força motivadora (Freud, 2011). Ou seja, nas formações grupais há a possibilidade de romper e superar o individualismo liberal arraigado por séculos de bombardeamento ideológico em nossas cabeças, pois não se trata de natureza ou essência humana egoísta e utilitarista. Nesse sentido, psicanalistas como Lacan, já insistira que a inteligibilidade da dinâmica pulsional dos sujeitos não está vinculada à lógica polar do prazer/desprazer (Safatle,2007). Freud, ainda ressalta que a experiência demonstrou que nos casos de colaboração se formam laços libidinais entre os companheiros de trabalho, os quais prolongam e solidificam a relação entre eles até um ponto além do que é simplesmente lucrativo. Isto é, não é a satisfação pessoal ou narcísica que está em jogo em todas as relações intersubjetivas, mas como Freud mesmo disse, no desenvolvimento da humanidade só o amor, ou a libido atua como fator civilizador, no sentido de modificar o egoísmo em altruísmo.




             A partir dessa dimensão colaborativa e solidária contida nas formações grupais elucidada por Freud, nós podemos recorrer à noção de multidão proposta por Antônio Negri, como substituta do conceito de massa. A multidão é um conjunto de singularidades, as quais formam uma subjetividade que não aceita mais as tradicionais formas de representação, por se tratarem de multiplicidades irredutíveis a uma unidade como massa (unidade de medida do capital) e de povo (correlato da soberania). Estas singularidades se auto organizam em variadas formas de rede de trabalho cooperativas entre si, numa reciprocidade colaborativa, são produtoras de novas relações sociais, expressam maneiras criativas de luta e de organização e se reinventam a partir da recusa, inconsciente ou não,  dos inconsistentes modelos de normatividade vigentes.  Ela é marcada pela heterogeneidade de tipos sociais, compostas por várias tribos, por ideologias diferentes, mas cooperativas entre si, e o trabalho imaterial, simbólico e até intelectual é outra traço marcante na multidão. Com efeito, ela aparece como uma tendência que exige cada vez mais a reflexão e uso do espaço e dos bens comuns, (i)materiais, e sobretudo do uso público da razão na disseminação do conhecimento e do saber que também é um bem comum.   
         
               Por essa perspectiva deve-se encarar as manifestações e protestos recorrentes no país, a despeito de várias críticas. Perspectivas que por sua vez, comprova o potencial emancipador dos agrupamentos humanos e dos movimentos sociais, entendidos como uma condição fundamental de possibilidade de reconhecimento de sofrimentos comuns e de objetivos e ideais elevados também partilhados entre os sujeitos, afim de superar coletivamente o aprisionamento na bolha solipsista do nosso pequeno e condenado  mundo reificado.




*Amom Rodrigues de Morais, bacharel em psicologia pela Universidade Federal de Goiás, regional Catalão.   







Referencias:
Curtis, Adam. The Century of the sel; BBC 2002. Documentário.
Freud, Sigmund. Psicologia das Massas e análise do Eu e outros textos. Obras completas, volume 15. Companhia Das Letras (2011).
Negri, Antônio. Para uma definição ontológica da Multidão. Revista Lugar comum. Nº19-20. pp 15-26
Safatle, Vladimir. Por uma crítica da economia libidinal. Artigo, PDF, 2007.