segunda-feira, 5 de maio de 2014

A orgia humana



POR: THIAGO LEITE










Diante das mudanças na aceitação das uniões homoafetivas e das demandas cada vez mais fortes por direitos e combate ao preconceito, o discurso reacionário reage como pode. “Dois homens morando juntos não são um casal. Dupla pode ser, mas casal é só homem e mulher. Eu até respeito a opção de dois homens conquistarem a união civil, mas é um crime eles adotarem uma criança”.


Muitas vezes esse discurso se acompanha de frases do tipo: “Isso é uma afronta contra Deus”. De certo modo, equivale a dizer que a homossexualidade é antinatural, ou seja, vai de encontro aos ditames da natureza. Dentro dessa perspectiva, parte-se do pressuposto de que a pessoa que se relaciona com um parceiro do mesmo sexo escolhe sua orientação sexual, escolhe “pecar”, e poderia facilmente seguir o caminho “natural”, se quisesse.


A natureza para justificar a tradição (argumentos quase lógicos)



Recorrer à “natureza” é uma das formas de argumentar no sentido de defender as tradições. Mas esse recurso é muito falho, se estivermos dispostos a um olhar científico e crítico sobre a realidade humana.

Um dos contra-argumentos preferidos daqueles que defendem a liberdade de orientação sexual é o de que há muitos animais que formam pares do mesmo sexo e que até copulam. Este argumento é importante para desmitificar a crença de que os animais bissexuados sempre só copulam heterossexualmente e sempre só formam casais heterossexuais.


Alguns leões machos formam parcerias que incluem a prática do sexo


Dessa forma, não adianta recorrer a supostos comportamentos “naturais”, já que muitas espécies servem de contraexemplos à ideia de que o “normal” é a heterossexualidade. Além disso, a masturbação, também condenada pelos guardiães da tradição, é uma prática comum em todo o reino animal. Porém, pode-se considerar que, não obstante o comportamento de espécies não-humanas, o Homo sapiens tem seu próprio comportamento sexual, que não pode ser reduzido a outros exemplos específicos.
 
Bonobos têm uma sexualidade parecida com a humana
Um possível sinal de que o ser humano é “suscetível” a comportamentos sexuais variados são os grandes antropoides, especialmente os bonobos (também conhecidos como chimpanzés-pigmeus). Estes não fazem sexo apenas para procriar (e quando o fazem, normalmente assumem a posição “papai-mamãe”, que costuma ser pensada pelos ocidentais como o modelo para os humanos). Não há entre eles tabus em relação à idade, sexo ou parentesco na prática sexual, que pode ocorrer grupalmente (como numa orgia) e serve para apaziguar os ânimos em conflitos dentro dos grupos.

Entretanto, mesmo com a proximidade genética com os humanos, os chimpanzés, gorilas e bonobos são espécies diferentes da nossa. Mas há outros elementos a ser considerados, especialmente no âmbito estritamente antropológico da questão.

É consenso entre os cientistas sociais a não-determinação genética dos comportamentos humanos. Os costumes, hábitos e culturas humanas são resultado muito mais da história, do aprendizado e da tradição do que dos genes e dos instintos.

Tanto é assim que, ao longo da história, as diversas culturas humanas adotaram diferentes formas de estabelecer suas relações interpessoais. Existem povos endogâmicos e exogâmicos, monogâmico, bigâmicos e poligâmicos. Cada povo considera que sua conduta é a natural, e não podemos considerar que o nosso modo de estabelecer o casamento é o que reflete com mais proximidade os “ditames da natureza”, pois ele é fruto da cultura.

Mesmo assim, quando se trata de considerar a saúde, o bem-estar e a formação das crianças, o discurso reacionário pode desconsiderar toda essa argumentação, alegando que a formação de um casal tem como objetivo básico a procriação, e dessa forma o “natural” é que um homem e uma mulher se unam para ter filhos e viver juntos.

Todavia, se recorrermos novamente aos animais não-humanos, veremos que muitas vezes a procriação não coincide com a formação de casais. Os babuínos, por exemplo, são poligâmicos, um macho insemina todo um harém de fêmeas, ficando outros babuínos machos excluídos do ciclo procriativo. Há espécies, como as tartarugas marinhas, que copulam apenas para procriar, e os progenitores de uma ninhada se separam e talvez não voltem a se encontrar nunca mais.

 
Harém de babuínos
Mas se for necessário recorrer à Antropologia, vemos que nem sempre o casal progenitor corresponde ao casal paterno. Nas Ilhas Trobriand, cuja cultura foi estudada por Bronislaw Malinowksi, o homem que procria não tem a mesma responsabilidade que a mulher com quem concebeu. Os verdadeiros pais da criança são a mulher que a concebeu e o irmão desta.

Entre os mosos (também conhecidos como na), uma etnia chinesa, não existe nem mesmo o papel de marido. O progenitor, para eles, não tem nada a ver com a criança gerada, e todos os pequenos são criados coletivamente. A única figura de autoridade paterna reconhecida é o irmão da mãe, como acontece entre os trobriandeses.

Apesar de tudo, a mentalidade tradicionalista e conservadora cristã pode argumentar que toda essa variedade no mundo animal e nas culturas humanas não corresponde ao que Deus planejou para a humanidade, sendo o “correto” aquilo que está preconizado nos ensinamentos bíblicos e na tradição ocidental cristã.

Mas o deus cristão é só um de tantos milhares inventados pelos seres humanos, e a Bíblia é só um entre tantos livros produzidos durante a longa e curta história humana, e está repleto de contradições quanto à preconização das relações humanas, a mais notável sendo a oposição entre relações poligâmicas no Velho Testamento e as monogâmicas no Novo. Mesmo assim, não são ditames, são apenas descrições das relações. A tradição monogâmica surgiu independentemente da Bíblia. Os mórmons, por exemplo, que são uma seita cristã, praticam a poligamia.

Se quisermos recorrer à “natureza” para justificar as condutas humanas, temos que admitir que uma imensa lista de comportamentos é perfeitamente aceitável para o Homo sapiens:

  • poligamia (tendo em vista tantas espécies que a praticam),
  • adultério (macacos fêmeas que copulam com machos fora do harém ao qual pertencem),
  • pedofilia (na maioria das espécies animais o sexo começa assim que o indivíduo se torna fértil),
  • divórcio (uma fêmea pode desistir de um macho para ficar com outro, mais forte),
  • sodomia (há tantas espécies cujos machos fazem sexo entre si),
  • fornicação (os animais não praticam ritos de casamento),
  • estupro (muitos machos usam a força para obrigar as fêmeas a copular),
  • incesto (a consanguinidade não é empecilho para a cópula em muitas espécies),
  • masturbação (cavalos costumam fazê-lo),
  • sexo por prazer (os bonobos sendo o exemplo mais proeminente) e
  • promiscuidade (os gatos fazem sexo com vários parceiros, sem formar laços) entre outros.

Nem tudo é eticamente aceitável só porque é natural, nem automaticamente condenável pelo mesmo motivo. As relações humanas se dão com base em acordos entre os indivíduos, e a ética de cada um dita as condutas e a fidelidade para com conceitos como a liberdade (tal qual a liberdade de uma criança não ser estuprada) e para com outras pessoas.


Parte 2


A natureza é muitas vezes um recurso argumentativo para defender um modelo ideal de comportamento humano. A Etologia pode ser fonte para justificar, por exemplo, um dado tipo de conduta sexual e de formação de laços entre as pessoas. Porém, vemos que os comportamentos animais são tão diversos que não é possível basear nosso ideal de comportamento humano numa suposta “natureza” imutável.

Quando não adianta recorrer à “natureza” para defender a tradição familiar cristã (que na verdade é tão diversa e muito mais ideal do que real), recorre-se a argumentos de cunho “sociológico”. Um exemplo, dado na primeira parte deste ensaio, é a defesa do suposto significado “correto” da palavra “casal”.


A tradição para justificar a tradição (argumentos circulares)



Costumamos nos referir a uma dupla composta de homem e mulher (sejam casados, irmãos ou colegas) como um casal, e esta palavra se reveste comumente desse sentido. Porém, olhemos para o passado (real e não idealizado) e para o futuro.

A origem da palavra casal está no latim casalis, que provém do radical casa, que significa “casa” mesmo. Casalis, segundo o Dicionário Houaiss, tem o sentido de “pertencente a uma casa”. Ou seja, em seu sentido etimológico, casal é um conjunto de pessoas que vivem juntas. Qualquer dupla de pessoas morando juntas, sejam uma mulher e um homem, sejam dois homens, sejam duas mulheres, pode ser considerada um casal, sem ferir nenhum suposto sentido consagrado da palavra.

E se olharmos para o futuro, veremos que, mesmo ignorando a etimologia, toda palavra evolui em seus significados. Se casal é uma palavra que costumava se referir a uma dupla de dois sexos, já passou a ter um sentido mais amplo, e já está sendo muito usada para nomear as uniões entre duas mulheres ou entre dois homens. Voltemos ao Houaiss:

2 par formado por macho e fêmea
3.1 marido e mulher
3.2 qualquer par de pessoas cuja relação é amorosa e/ou sexual
4 Derivação: por extensão de sentido.duas coisas iguais; par, parelha

A acepção 3.2 diz tudo, e a 4 acrescenta o detalhe de que duas coisas “iguais” formam um casal, ou seja, dois seres humanos são um casal, independentemente dos sexos. Além disso, os termos “par” e “parelha” aparecem como sinônimos, e são palavras que costumamos usar para nomear duplas de quaisquer coisas.

Entretanto, muitas pessoas, mesmo aceitando a opção de dois indivíduos do mesmo sexo formarem um casal (ou qualquer que seja o nome que queiram usar), são categoricamente contra a adoção de crianças por homossexuais.

Alegam que a criança que vive com dois pais ou duas mães não tem em casa o modelo ideal de família; que ela vai se sentir diferente das outras crianças que têm uma mãe e um pai; que ela não vai ter um modelo de masculinidade (quando tem mães lésbicas) ou de feminilidade (quando tem pais gays); que ela vai ser influenciada em sua sexualidade; que ela corre o risco de ser vítima de pedofilia.

Mas o “modelo ideal de família” é sempre relativo. A começar pelo fato de a noção mesma de família ser uma construção social e não um dado óbvio nem natural. As diversas culturas humanas têm suas formas peculiares de estabelecer consanguinidade, parentesco, casamentos, alianças e afiliações.

Existem famílias consideradas apenas no nível nuclear (como é, relativamente, o caso dos casais com filhos nas sociedades ocidentais urbanas), enquanto outras nomeiam como família agrupamentos mais amplos, que incluem tios, primos e sobrinhos (muitas comunidades rurais no Brasil representam a si mesmas como “uma família só”).

Em muitas sociedades “simples”, como várias culturas indígenas brasileiras e tantas outras sociedades tribais mundo afora, usa-se o termo equivalente a “mãe” para designar todos as tias, bem como se nomeiam “pais” todos os tios, enquanto toda a geração seguinte é referida como “filhos” e “filhas”.

Porém, é claro que estamos falando de outras sociedades que não a “nossa”. Em “nossa sociedade”, a família é composta de pai, mãe e filhos. Se o casal não é heterossexual, se não planeja ter filhos ou se é promíscuo, afasta-se muito daquilo que se entende como “família”. Isso serve de argumento para a insistência do discurso conservador em negar o direito dos casais homossexuais constituírem família e formarem casais.

Como vimos na primeira parte deste ensaio, as famílias humanas são diversas. E, mesmo em nossa sociedade, a noção de família, parentesco e aliança sempre mudou ao longo da história. Os ideais e as práticas estruturam condutas que são tidas pela sociedade como naturais e universais (o que também constitui uma representação etnocêntrica da humanidade) e relegam à condição de exclusão ou de sub-humanidade toda a diversidade real, que é ela mesma também estruturada nas práticas humanas.

Por isso, a forma como se constituem as uniões de pessoas na atualidade, mesmo no âmbito de uma sociedade como a brasileira, são muito variadas e estão muito longe de seguir à risca um modelo. Há famílias de mãe sem marido (por escolha ou não), de pai sem esposa, de progenitores separados, de homens que se casam e adotam uma criança, de mulheres que fazem o mesmo, de crianças criadas por avós ou tios, de trios de parceiros e até de uniões que não têm nenhum traço de consanguinidade.

É inprofícuo e irrelevante se preocupar com uma suposta inadequação das crianças que são criadas por dois pais do mesmo sexo. Costuma-se argumentar que essa inadequação é inevitável, pois na família e na escola ainda se veicula o mesmo ideal de família. O que é até verdade, mas esse argumento acaba chegando a uma conclusão que reforça a mesma tradição, e ninguém se propõe a mudar essa concepção e ensinar aos mais novos que as formas de as pessoas se relacionarem são muito diversas. Acaba-se construindo um argumento circular, em que a tradição justifica a importância da tradição.

Tanta diversidade nas relações familiares não leva à ausência de modelos (masculinos ou femininos, divisão que é em si mesma arbitrária), pois é uma ilusão achar que a influência dos pais sobre os filhos é a única relevante. A Psicanálise moderna mostra que as figuras paterna e materna não estão necessariamente ligadas ao pai e à mãe, respectivamente. Cada um dos pais pode carregar aspectos dos dois polos da dualidade.

Além disso, há muitas outras pessoas ao redor da criança que servem de modelos de comportamento, e a falta de um pai ou de uma mãe em casa não significa de modo algum uma falta (a não ser para mães e pais solteiros que precisam cuidar sozinhos de seus filhos).

Mas ainda há o medo de que uma criança com pais ou mães homossexuais seja influenciada pelo comportamento sexual dos pais. Isso já foi muito discutido e sabemos que a porcentagem de heterossexuais versus homossexuais é a mesma, independentemente da sexualidade dos pais. Se essa influência fosse tão significativa, não haveria tantos homossexuais filhos de casais hétero.

Ainda assim, sempre há o medo de que os homossexuais queiram adotar crianças para satisfazer seus desejos pedofílicos. Mas a homossexualidade está tão próxima da pedofilia quanto a heterossexualidade. Sabemos quão comum é o abuso sexual dos filhos de pais heterossexuais, quantas meninas que ficam grávidas do pai, sem falar das violências de outros tipos praticados por pessoas severas que batem e espancam as próprias crias. Um pesquisa nos EUA mostrou que a imensa maioria dos casos de pedofilia é cometida por heterossexuais.

Mas é perfeitamente plausível que o discurso conservador defenda que esse comportamento pedofílico de heterossexuais é mais aceitável do que o de homossexuais, tendo em vista o costume arraigado de velar os abusos dentro das famílias tradicionais. O medo de que um homossexual abuse de um filho é, provavelmente, muito mais o medo de que a criança se torne homossexual, pois, por mais que tente argumentar pela lógica, esse discurso se baseia sempre na irredutível e pré-concebida homofobia.





Fontes das imagens:

Druuna X 2 – Druuna
Animals of South Africa - IDStyle
Bonobos, Left & Right: Primate Politics Heats Up Again as Liberals & Conservatives Spindoctor Science – Skeptic

Sacred Baboon – aBitAbout
Trecho de um quadrinho de Bórgia, HQ de Alejandro Jodorowsky e Milo Manara – Conrad Editora
Lesbian parents better than single moms? – Jane meets Jane
Link

Overview of Lesbian and Gay Parenting, Adoption and Foster Care – ACLU




Fonte do texto: 
http://teianeuronial.com/a-orgia-humana-parte-1/#ixzz30oez7ALq 
http://teianeuronial.com/a-orgia-humana-parte-2/#ixzz30oNyEpjR
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