Por: Bertone de Oliveira Souza¹
Geneton Moraes Neto²
Eric
Hobsbawm : Pecado capital do capitalismo é injustiça social. Pecado capital do
socialismo foi a falta de liberdade. Mas ainda há “um vasto espaço para o
sonho”
Por: Bertone de Oliveira Souza¹
Geneton Moraes Neto²
Eric
Hobsbawm : Pecado capital do capitalismo é injustiça social. Pecado capital do
socialismo foi a falta de liberdade. Mas ainda há “um vasto espaço para o
sonho”
No último mês de
outubro fez um ano do falecimento do historiador britânico Eric Hobsbawm. Para
quem estuda história, é de conhecimento geral que Hobsbawm é uma das maiores
referências em história contemporânea. Seu legado intelectual é vastíssimo e
suas contribuições para a renovação do marxismo enquanto perspectiva teórica
também foram importantíssimas. Detratores do renomado historiador já tentaram
acusá-lo de cúmplice do stalinismo e apoiador de tiranias; nada disso, contudo,
pode ser imputado a ele. Hobsbawm faz parte de uma geração de pesquisadores,
como E.P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Williams que não se dobraram aos
direcionamentos reducionistas de certo marxismo nem descartaram o marxismo para
a lata de lixo por conta dos direcionamentos totalitários que o socialismo
ganhou no decorrer do século XX.
No
início dos anos 1990, ele também contribuiu para uma coletânea de textos
organizada por Robin Blackburn com o título “Depois da Queda: o fracasso do
comunismo e o futuro do socialismo” (publicado no Brasil pela editora Paz e
Terra e hoje disponível apenas em sebos), que reuniu a contribuição de variados
intelectuais, além dele próprio e de Thompson, também de Norberto Bobbio,
Habermas, Fredric Jameson, entre outros. Escrito no calor dos acontecimentos
que resultaram no fim da União Soviética, os autores analisaram com bastante
lucidez o significado histórico daqueles eventos, e, embora algumas análises
possam estar superadas, ainda vale a pena a leitura. Ler sua obra é tanto instigante (incluindo
sua autobiografia, “Tempos Interessantes”), como também necessária para
compreendermos as raízes de alguns mal-estares sociais e intelectuais de nossa
época.
Em
1995, Hobsbawm concedeu uma entrevista para o jornalista Geneton Moraes Neto, e
publicada em sua coluna no G1, em que esclarece a importância da União
Soviética no século XX, em que sentido ele a apoiou, o significado da morte do
marxismo, a importância da utopia enquanto motivação para a elaboração de
perspectivas de futuro e da crítica à injustiça social, um dos pontos fortes do
marxismo que não perdeu sua atualidade, entre outros temas. A entrevista
permanece tão atual como há quase vinte anos. Eu havia guardado esse texto em
meus arquivos e reproduzo aqui para reflexão.
Órfãos
de Marx, saudosistas do socialismo, parem de chorar. Porque o que sumiu na
poeira da História foi o chamado “socialismo real”, um equívoco cinzento feito
à base de partido único, Estado onipotente, arte demagógica e imprensa
oficialesca. Mas, desfeito o equívoco, abre-se agora “um vasto espaço para o
sonho”, território livre para novas utopias. Quem garante é o historiador que
conseguiu se transformar em guru dos historiadores, o marxista que fez a
autópsia do socialismo : o britânico Eric Hosbawm.
Um
acaso do calendário reúne a biografia pessoal de Hobsbawm a um dos principais
acontecimentos do século XX : o historiador nasceu em 1917, ano em que Lenin
escreveu a palavra bolchevique na história da Rússia. Quando ainda usava calças
curtas, Hobsbawm virou comunista, se é que um menino de quatorze anos é capaz
de enumerar três diferenças razoáveis entre “centralismo democrático” e pudim
de chocolate. Passado o vendaval,ele faz uma avaliação sincera das ilusões que
viveu.
Eis
a entrevista, agora publicada pela primeira vez na íntegra :
GMN:
Qual foi a maior ilusão política de Eric Hobsbawm ?
Hobsbawm: “Minha maior
ilusão política foi acreditar que a União Soviética poderia ser uma alternativa
de desenvolvimento para o Ocidente. Tal crença tomou corpo simplesmente porque,
a certa altura do século XX, a economia capitalista mergulhou numa crise
catastrófica, à qual a União Soviética parecia imune. Mas, principalmente
depois dos anos cinquenta e sessenta, ficou claro que o socialismo soviético
não iria cumprir suas promessas nem realizar suas potencialidades. A partir
daí,muitos – como eu – deixaram de acreditar no que tinham acreditado quando
jovens”.
GMN: O marxismo morreu ?
Hobsbawm (depois de longa
pausa): “Não. Em primeiro lugar, a crítica essencial que Marx fez ao
capitalismo é necessária ainda hoje. Como historiador, digo que a abordagem
marxista é extremamente útil para que se entenda como as sociedades mudam- não
apenas as sociedades capitalistas mas também as sociedades socialistas, hoje
inexistentes. Não há dúvida de que uma grande parte das crenças do marxismo já
não pode ser considera válida. O fim do socialismo real deixou um enorme
vazio”.
Hoje, um grande número dos
que poderiam estar na esquerda – socialista ou revolucionária- já não sabe em
quem acreditar”.
GMN: O senhor lamenta ter
apoiado os governos soviéticos ?
Hobsbawm: “Não lamento,
porque nunca vivi na União Soviética. Quem, como eu, apoiava os governos
soviéticos não estava pensando na Rússia, mas em nossos próprios países e no
resto do mundo. Porque,para o resto do mundo,a existência da União Soviética,
ainda que fosse ruim para a Rússia, teve um desenvolvimento positivo. Sem a
União Soviética,não teríamos vencido a Segunda Guerra.
Sem a União Soviética, o capitalismo
não teria sido reformado, como foi, depois da Guerra. Os que, no Ocidente,
foram marxistas ou apoiaram o movimento comunista não têm do que se lamentar,
porque estavam apenas tentando alcançar, em seus próprios países, objetivos que
eram bons. Quando tiveram a chance de mudar os seus países, mudaram para
melhor. Mas, para tanto, pediram o apoio de um regime que impôs um enorme
sofrimento ao povo russo – mais do que a qualquer povo”.
GMN: Qual foi o pecado
capital do socialismo ?
Hobsbawm : “A falta de
liberdade foi o pecado capital, particularmente para os intelectuais. Mas o
pecado capital do socialismo foi acreditar que a economia poderia ser operada
inteiramente através de um planejamento centralizado, sem a atuação dos
elementos do mercado. Os consumidores, os cidadãos comuns, não tinham a
liberdade de comprar o que queriam. O que existia, basicamente, era um exagero
do papel do Estado Central como um arquiteto da nova sociedade.
Marx disse, em relação
às suas teorias, que o importante não era interpretar o mundo, mas modificá-lo.
Ficou provado que é mais difícil mudar o mundo através das linhas de análise
marxista do que interpretá-lo. Além de tudo, o desenvolvimento dos partidos
socialistas foi profundamente influenciado – e distorcido – pelo fato de que o
marxismo tomou o poder na Rússia. O que aconteceu? A União Soviética dominou
por anos e anos o desenvolvimento do marxismo e do movimento comunista
internacional, o que acabou provocando uma divisão – mais negativa do que
perigosa – entre as duas facções do marxismo: os social-democratas e
reformistas de um lado; os comunistas e revolucionários de outro”.
GMN: E qual é o pecado
capital do capitalismo ?
Hobsbawn: “O pecado capital do
capitalismo é a injustiça social. Isso quando nós falamos em termos morais. Em
termos práticos, o pecado é que o capitalismo é um sistema que desenvolveu um
mundo que precisa de administração e planejamento global – mas o próprio
capitalismo não pode prover esta administração e este planejamento. O
capitalismo, então, deixa o mundo com sérios e crescentes problemas, para os
quais não encontra soluções”.
GMN: O senhor disse uma vez
que “o problema básico da história marxista é descobrir como a humanidade
passou da Idade da Pedra para a Idade do Átomo”. Se o marxismo não conseguiu,
quem é que vai conseguir explicar?
Hobsbawm: “Em primeiro
lugar, não acredito que o marxismo tenha falhado na explicação do
desenvolvimento da História. Eis um grande debate que se desenvolve entre
historiadores e filósofos. A contribuição do marxismo permanece essencial. O
que haverá é um marxismo modificado. A crença dos marxistas na determinação
única do desenvolvimento econômico provou ser inadequada. Deve-se levar em
conta a análise de fatores como a cultura e as ideias”.
GMN: Haverá lugar na
história para uma nova tentativa de aplicar a ideia marxista de uma sociedade
sem classes?
Hobsbawm: “O socialismo
real – tal como o tivemos até há poucos anos – não vai voltar. Mas há lugar,
sim, para uma nova tentativa de construir uma sociedade de liberdade e de
igualdade, em que os seres humanos terão a chance de desenvolver todas as suas
capacidades. Eu espero que haja espaço para movimentos que favoreçam a justiça
social”.
GMN: O fim do
socialismo foi um choque para as esquerdas. Qual será o próximo sonho? Um jovem
arriscaria a vida para implantar uma sociedade liberal-democrata, como se
arriscou antes por outros ideais?
Hobsbawn: “Uma
democracia liberal é algo pelo qual ninguém é capaz de morrer. Nem é bom que um
jovem esteja preparado para morrer tão facilmente por uma causa. O fim do
socialismo real deixou um enorme vazio. Hoje, um grande número dos que poderiam
estar na esquerda – seja a esquerda socialista, seja a esquerda revolucionária
– não sabem em quem acreditar”.
GMN: O vácuo pode
criar espaço para novos sonhos?
Hobsbawn: “Há um vasto
espaço para o sonho. Mas também há o perigo de que esse espaço seja preenchido
por um tipo errado de sonho: por sonhos nacionalistas, por sonhos racistas, por
sonhos de ressureição de religiões fundamentalistas. De qualquer maneira,
problemas como a pobreza e a desigualdade, cada vez mais presentes no
desenvolvimento global da economia, assumem uma tal proporção que haverá
certamente espaço para movimentos políticos que tentem resolvê-los”.
GMN: É possível prever
que movimentos serão esses ?
Hobsbawn: “Alguns
desses movimentos serão os antigos movimentos de esquerda. Há no Brasil, por
exemplo, um partido de trabalhadores que é similar a partidos de massa que
existiram no passado na Europa. Em muitas partes do Terceiro Mundo, há lugar
para movimentos iguais aos que existiram antes. Não devemos, portanto, eliminar
os movimentos do passado.
A verdade é que o vácuo
ideológico será muito mais sério nos países desenvolvidos, os países ricos.
Porque nestes países a crise da fé e das crenças – e também a mudança provocada
pela extensão da industrialização a países do Terceiro Mundo – terão um efeito
mais dramático”.
GMN:A desilusão das
esquerdas dará, então, lugar a novos sonhos num futuro próximo ?
Hobsbawm: É possível que
sim, mas, felizmente, historiadores não são profetas.
Nós
só tratamos do passado. Historiadores fizeram previsões que provaram ser
inexatas. Hoje, com exceção do instituto de pesquisas econômicas dos governos,
todos são céticos na hora de fazer previsões…”.
GMN: Como é que a
História vai julgar Fidel Castro ? Daqui a meio século, ele vai receber um
julgamento positivo ou vai ser condenado como o último ditador comunista ?
Hobsbawm: “O
julgamento será positivo, sem dúvida alguma. Fidel Castro será claramente a
figura mais importante da história nacional de Cuba. Quanto à América Latina
como um todo, Fidel Castro será um símbolo de libertação – ainda que as
políticas de libertação que ele adotou não tenham sido bem sucedidas. Em todo
caso, será visto não como um homem não muito bom ao governar o próprio país.
Porque, sob o aspecto econômico, eles fez um péssimo trabalho. Por outro lado, as
reformas sociais são absolutamente esplêndidas. Há fraquezas no regime cubano,
mas Fidel Castro vai ter um papel bastante positivo nos julgamentos históricos
do futuro”.
GMN: O senhor diz, na
última página do livro “A Idade dos Extremos”, que, no final do Século XX, não
sabemos para onde vamos. É bom ou é ruim não saber para onde caminha a humanidade?
Hobsbawm: “Não saber
para onde vamos é o destino da humanidade. Algumas vezes,o homem pensa que sabe
para onde vai. Mas, em geral,a gente erra quando pensa que sabe”.
GMN: O senhor diz que
o homem hoje tem a ilusão de que vive num “eterno presente”. Isso afeta a
percepção da História?
Hobsbawm: “O “eterno
presente” é, em parte, resultado da quebra de relações entre as gerações e, por
outro lado, consequência da sociedade de consumo. A desvantagem é que é
impossível que as pessoas entendam a situação em que vivem sem que saibam como
as coisas surgiram, antes. A maioria das pessoas na verdade gostaria de
estabelecer tal continuidade entre elas e o passado. Não é fácil estabelecer
tal continuidade hoje, porque as mudanças do mundo têm sido tão rápidas e tão
profundas que a experiência de vida da maioria das pessoas é marcada pela
descontinuidade”.
GMN: A televisão é
culpada por criar a ilusão de que vivemos todos num eterno presente ?
Hobsbawm: “Sim. Mas
este é apenas um aspecto de uma sociedade de consumo que atua satisfazendo os
desejos e as vontades das pessoas a qualquer momento. A sociedade de consumo se interessa pelo que
as pessoas fazem agora. A lógica do mercado é ganhar dinheiro com o que as
pessoas vão gastar agora – não com o que
vão gastar daqui a vinte anos”.
GMN: O senhor é frequentemente
citado na imprensa como “o maior historiador vivo”. Aceita o título?
Hobsbawm: “É difícil
julgar. Não me vejo como o mais importante historiador, mas é uma sensação
agradável ver que as pessoas pensam que os livros que escrevi são importantes. Sinceramente,
não me cabe julgar se essas pessoas estão certas. Em todo caso, penso que
exageram….”.
GMN: Quem é Eric Hosbabwm,
por Eric Hobsbawm ?
Hobsbawm : “Tudo o que
posso dizer é que tento tentado ver como, num determinado período da História,
as coisas se juntam para formar um todo. Porque existe, sim, uma conexão entre
as diferentes partes da vida”.
(“O
comunismo representou o ideal de transcender o egoísmo e servir a toda a
humanidade, sem exceção”, escreveria Hobsbawm em 2002. “Emocionalmente,
pertenço a uma geração ligada por um quase inquebrável cordão umbilical à
esperança de uma revolução mundial, não importa o quão cética ou crítica
diante da União Soviética”. Professor da
Universidade de Oxford, Nial Ferguson perguntou, num artigo publicado sobre
Eric Hobsbawm em setembro de 2002, no Daily Telegraph :
“Como
pode um brilhante acadêmico cometer um erro político por tanto tempo – por
cinquenta anos, para ser exato, período em que foi membro do Partido Comunista?
Como pode ele continuar a acreditar, como ele claramente faz, que alguma coisa
pode ser salva da lamentável empresa de Lenin e seus asseclas? A tragédia do
comunismo – o que custou a vida de dezenas de milhões – é que um homem com a
inteligência de Eric Hobsbawm não pôde ver – e ainda não pode – que o comunismo
foi a negação tanto da liberdade quanto da justiça, em nome de um espúrio e
falso igualitarismo”.
As
simpatias pelo ideal comunista ainda hoje dividem historiadores. Quando uma
edição de bolso do Manifesto Comunista apareceu – surpreendentemente – no
terceiro lugar na lista de livros políticos mais vendidos publicada toda semana pelo Mail on Sunday, procurei
Kenneth R. Minogue, titular da cadeira de Ciência Política da London School of
Economics :
–
É preocupante ver como um melodrama simplista como este Manifesto é tão popular
– disse-me, na entrevista. Eu diria que é simplesmente notável a simplicidade
de gente que acredita que um intelectual alemão – escrevendo em 1848 – possa
entender a essência do mundo moderno. A um amigo que quisesse entender as
tentações do totalitarismo, eu recomendaria que lesse o Manifesto Comunista e
ouvisse aquela canção do musical “Cabaret” chamada “Tomorrow Belongs to Me” (“O Amanhã me
Pertence”). Tanto o Manifesto como a canção exibem um belo otimismo e uma simplicidade
de raciocínio que terminam levando à morte e à destruição.
Hobsbawm
resumiria em três linhas, no parágrafo final do livro autobiográfico “Intersting Times” o que sente no início do
século XXI :
-
Não nos desarmemos, ainda que os tempos sejam insatisfatórios. A injustiça
social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não ficará melhor por
conta própria).
(*)
Entrevista gravada em Londres, em 1995. A íntegra da entrevista com Eric
Hobabawm – assim como com o filho do
líder soviético Nikita Kruschev, com um general da KGB e com o agente
encarregado de eliminar Leon Trotsky -
foi publicada no nosso livro “DOSSIÊ MOSCOU”
1- Historiador, professor do curso de História da UFT.
2 - É um jornalista brasileiro.
Fontes: