quinta-feira, 20 de março de 2014

DA QUESTÃO DA TORTURA

Quantos séculos atrasados se encontra o pensamento de alguns brasileiros?


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Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo. O direito da força só pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado.



Eis uma proposição bem simples: ou o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou. Qual o fim político dos castigos? o terror que imprimem nos corações inclinados ao crime.
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Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade.
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Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz! 
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A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o culpado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mau grado a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.
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Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se tão dificilmente a distinguem no ar, nos gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo, como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões da dor, quando todos os sinais, que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados, estiverem alterados e confundidos? Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue, às vezes, a verdade da mentira.


Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante notável: é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido à questão tem tudo contra si: ou será condenado, se confessar o crime que não cometeu, ou será absolvido, mas depois de sofrer tormentos que não mereceu.
É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas. Não há povo, não há século que não possa citar os seus.
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Em terceiro lugar, submeter um acusado à tortura, para descobrir se ele é culpado de outros crimes além daquele de que é acusado, é fazer este odioso raciocínio: “Tu és culpado de um delito; é, pois, possível que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita me preocupa; quero certificar-me; vou empregar minha prova de verdade. As leis te farão sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerar-te culpado”.
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Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso! São homens endurecidos nos morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade!


(BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e da Penas. p. 38-46)

Sobre o autor:


Cesare Beccaria (lê-se Tchésare Beccaría) nasceu na capital da Lombardia, filho de Giovanni Saverio di Francesco e de Maria Visconti di Saliceto. Foi educado em Parma pelos jesuítas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da literatura e da matemática. Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Montesquieu e de De l'esprit de Helvétius. Desde então, todas as suas preocupações se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão e que, inspirando-se no exemplo da de Helvétius, divulgou os novos princípios da filosofia francesa. Além disso, a fim de divulgar na Itália as idéias novas, Beccaria fez parte da redação do jornal II Caffè, que apareceu de 1764 a 1765.
Considerado um clássico do Direito Penal, Beccaria foi a primeira voz a levantar-se contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática de confiscar bens do condenado. Uma de suas teses é a igualdade perante a lei dos criminosos que cometem o mesmo delito.

A obra Dos Delitos e das Penas é um dos clássicos e sua leitura é considerada basilar para a compreensão da História do Direito.Suas idéias se difundiram rapidamente, sendo aplaudidas por VoltaireDiderot e Hume, entre outros, e sua obra exerceu influência decisiva na reformulação da legislação vigente da época, estabelecendo os conceitos que se sucederam.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cesare_Beccaria