domingo, 1 de junho de 2014

Um Deus imanente. O ateísmo como verdadeira salvação



Por Amom R. Morais


“Aceita, meu filho, um conselho final: o uso dos livros não tem fim e o estudo em demasia é enfadonho”. (Livro do Eclesiastes, 12,12)
“Creio porque é absurdo”.
“É a ti que chamo, alma simples, ainda no redil, não manipulada ainda e privada de cultura...Preciso da tua ignorância, porque ninguém confia em quatro noções de cultura”. Tertuliano de Cartago (apologista cristão)


A nostalgia do Céu

          Relendo alguns escritos autobiográficos, se assim os posso chamar, me tomou de assalto um afeto nostálgico por tempos antigos de minha adolescência, que foi marcada profundamente pela religiosidade. Lembro da expressão “ a nostalgia do céu me trouxe de volta”, e por ela me sinto imbuído em versar um pouco sobre uma experiência mística muito significativa e que se faz tão no centro de muitas polêmicas, bem como, fundamento último de vidas humanas e doutrinas políticas, a saber, a religião. Não posso voltar a ela, pois ela se foi pra sempre. No entanto, fica a sua memória, a única cognição que permite manter viva ainda uma experiência mais complexa do que nós imaginamos e entendemos.
        
          Portanto, essa é uma oportunidade, depois de tanto tempo negligenciada, de descobrir o que ainda pode ser salvo da passagem pela religião e o que esta pode nos dizer para além das suas formas assumidas de fanatismo, fundamentalismo, puritanismo, e outras deturpações morais e normativas. Há outra saída como alternativa à ascensão reacionária tão vista hoje na cultura e na política para a religião? Pode ser que sim. Começaremos a responder, pois, por um breve relato pessoal.  
         
         Ascese transformadora é uma expressão pela qual denomino aqui o período importante do qual mencionei anteriormente. Vale salientar, pois foi a partir desta, que a sucessão dos eventos somada ao acaso e simultaneamente à sorte e ao azar das circunstâncias, que me fizeram estar aqui digitando essas reflexões. Que fase é esta, afinal? A de que eu fui abduzido por um ser de outra dimensão. Não, não foi nenhum extra terrestre ou óvni, foi uma outra fantasia mais nociva chamada deus. Isso mesmo, me tornei um asceta religioso aos 15 anos.
        
         A minha experiência religiosa começa com a minha ida a um retiro espiritual promovido pelo movimento carismático jovem da igreja católica. Nesse encontro, “me encontrei com espírito santo”, via toda uma mística induzida, junto a um sentimentalismo romântico sobre deus e outros elementos sacralizados e metafísicos. Mas todo processo de conversão/integração ao movimento religioso começa depois com o estreitamento das relações com a comunidade, e sobretudo, com um envolvimento com o ambiente espiritual que dali emergia.
          
        A partir desse investimento na vida religiosa, paulatinamente fui internalizando os preceitos morais que davam forma e aparência às minhas condutas ao ponto levado a extremo de atos radicais em prol da “perfeição evangélica”. Tinha como postura uma atitude engessada de me portar puritanamente, encoberto de pudor e revestido com uma áurea santa e douta.
        
       De uma fase de profundo espiritualismo sentimental, em que quase estava me tornando um eremita, fui passando a uma atitude mais branda de um religioso teórico. Quanto mais as pessoas ao meu redor me rotulavam de fanático, empolgado, mais eu criava resistência e persistia naquele contexto. Aos poucos, me senti no dever de incorporar apologeticamente o corpo doutrinário católico e tentar fortalecer, assim, o sentimento religioso enquanto conjunto de princípios. Nesse bojo, tive os primeiros contatos com a prática da leitura, no primeiro momento, lia materiais doutrinários que justificassem a minha fé. Tinha um grande apreço pelos ensinamentos dos grandes padres ou pela teologia patrística, que construíram os primeiros fundamentos dogmáticos da instituição, Igreja, revestida com toda uma retórica teológica e filosófico-cristã. Para além da defesa da fé, todo esse esforço também serviria para me dar suporte e referência na minha cosmovisão, ou melhor, me ajudava a ver, interpretar e, sobretudo, experenciar o mundo de modo geral.
        
        No aprofundamento dessa atitude cognoscente do mundo teológico e filosófico cristão, por meio das leituras apologéticas, fui me imunizando das ditas teorias filosóficas “perigosas”, sem mesmo antes conhecê-las por si mesmas. Por conseguinte, o tempo da transição começa a surgir, na medida em que tenho a curiosidade de transar com as ditas “filosofias da morte”, a saber, o materialismo marxista, as filosofias da desconstrução moral religiosa, o existencialismo, dentre muitas outras. Os primeiros contatos com nomes como Marx, Nietzsche, Sartre, Camus e outros tantos se deram através de revistas e livros de apologia católica extremamente convincente até então. Pois bem, por ironia da providência divina tive curiosidade em conhecer o outro lado da moeda, fui aos clássicos. Todavia, não usei camisinha mental de sabor cristã e me acabei contaminado das podres DSTs intelectuais, fadado agora a ter a minha alma definhando cronicamente na doença existencial.
       
         Mas minha renúncia à fé religiosa não se deu apenas por esse motivo teórico, este, não tem valor se não for entendido e vivenciado com a concretude da realidade, a teoria responde e é expressão viva de uma reprodução da vida social e existencial. Para aqueles que dizem que virei ateu porque fiz umas leiturinhas gratuitas de filósofos ou porque entrei na universidade, nada mais do que uma ingenuidade, passando ao largo da questão. Inclusive, na universidade o número de ateus é bem menor do que se imagina e não é nem uma modinha como muitos pensam. Muito menos se deu em virtude de uma suposta condição mais cômoda, como muitos atribuem ao ateísmo, pois seguiria a máxima de Dostoiévski: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Ao contrário, se Deus não existe, nada me é permitido, fazer em nome dele, como muitas religiões o fazem (os atentados terroristas são um exemplo), logo, não tenho a onde me apoiar, estou sozinho sem refúgio, sendo muito mais desconfortável do que a condição do crente.   
       
        Este processo de mudança foi gradual e lento, situado também no contexto da fugacidade espiritual da religiosidade do chamado reavivamento pentecostal, típico do movimento carismático católico. Pode-se falar, em certa medida, de uma monotonia ritual das práticas ascéticas. Isto é, a repetição das ações ascéticas fomentava a perda da disposição apaixonada da interiorização em busca do contato da entidade divina. Como cheguei a essa conclusão “absurda”? Na própria adoração e contemplação da excelência divina, iluminada ainda mais por insights de dúvidas cruéis que queriam amputar a minha fé de algum modo, me forçavam na ideia da minha projeção desse grande Outro silente na imagem de um deus que parecia sempre estar comigo.
       
        Bom, não quero argumentar a respeito de minha incredulidade, pelo menos não nesse momento. O que posso generalizar em poucas palavras, é que, havia passado de uma crise de crença fideísta para uma posição cética, apesar de, por muito tempo não querer racionalizar e refletir profundamente sobre todo esse processo, pois a reflexão, assim como a filosofia, de acordo com Sartre, exige o pensar contra si mesmo.  Esse é um processo doloroso e difícil de o crente aceitar, em função do medo e incômodo ao encontrar a possível verdade da crença.  Isso, com efeito, culminaria no desgaste cada vez maior do vigor e de todo entusiasmo pela assiduidade nos rituais e também nos compromissos com a comunidade religiosa, configurando-se num afastamento maior do grupo e das práticas religiosas.
      
       Toda essa confusão de ideias que me atravessava no plano da crença teve como pano de fundo um conflito de princípios que começara a surgir oriundo da tomada de consciência de minhas condições reais, a saber, condições materiais, pessoais, familiares, na medida em que tentava resgatar sentimentos de outrora, uma vez dissimulados pela ética cristã. Um desses sentimentos chama-se Revolta. Esta, fora substituída pela “docilidade evangélica”, pelo perdão incondicional, pela passividade resignada, que me sufocou enquanto sujeito ativo, privado da força de insurgência do ódio, mas não como força reativa, mas como possibilidade de estabelecer condições de potência afirmativa de meu ser.
        
        Essa revolta emergia de condições objetivas experimentadas como insuportáveis e com força traumática, obrigadas a serem recalcadas no comportamento religioso em face da superficialidade aparente da santidade cristã. Nesta, era semeado o ódio ao ódio e a revolta concebida como princípio de doença e não como força criadora, transformadora e transcendente. Patológico, não era o ódio ou rancor como se doutrinavam, na verdade, era toda a hipocrisia corruptora da nobreza dos atributos autênticos e de toda dimensão visceral ou inumana do humano. Toda essa hipocrisia reinava no jogo das personas e máscaras no palco da existência social.
       
 O céu da ética medieval

        No que tange às mascaras no palco existencial, as implicações práticas da convicção puritana são sérias. Quando se olha para o outro a partir de sua elevada grandeza ética se chega a moralismos e intolerância, não só com o outrem, mas também consigo mesmo. Não se permitir vivenciar contradições da própria conduta é um traço marcante no caráter ortodoxo da retidão santa. A santidade é racionalizada dentro dos limites rígidos da razão que não reconhece sua negação intrínseca, a diferença, o erro e o novo, que é próprio do movimento do ser finito. Não há espaço para a contradição no horizonte da mentalidade dogmática. Motivo pelo qual, seus erros dificilmente são assumidos e por vezes escondidos a sete chaves.
       
        Esta mesma racionalização do sentimento moral não nos é nenhuma novidade. Ela remonta aos tempos mais antigos da elaboração da teologia cristã, mais precisamente, ao período da patrística. Um dos grandes padres, se não o maior deles, Santo Agostinho testemunhou em suas obras sua linda história de conversão, e a partir dela nos legou talvez a maior teologia. Agostinho, como era conhecido antes da conversão, era um puto e libertino, mas depois como membro do clero dá-nos grandes exemplos de uma retidão moral. Em suas meditações sobre o pecado original, concebeu a ereção como uma recordação triste da corrupção da natureza humana. O livro “Uma mente própria: A história cultural do pênis”[1] descreve que nosso santo, acabou por introduzir no pensamento medieval a conversão do pênis de “caule sagrado” em um instrumento do demônio.
       
         Mas a demonização do pênis como prova da nossa luxúria, pecado a ser combatido, não é o único exemplo das implicações desagradáveis (pelo menos pra min) do ensino teológico. Se formos até o período da escolástica, o mais brilhante e último momento do pensamento da teologia medieval, podemos resgatar o polêmico manual da inquisição, o famigerado Martelo das Feiticeiras [2]. Publicado em 1487, já no período do renascimento, o livro é um ensino destinado aos inquisidores (teólogos) a reconhecerem as bruxas em meio à suas dissimulações, além de procedimentos de como inquirir, julgar e executar a pena.  Particularmente, cheguei a entrar em contato com o livro, mas li pouco além da introdução, por não entender o “teologuês” característico da obra. Mas para a época era uma linguagem comum, todas aquelas instruções numa linguagem teológica era muito bem assimilada pelos inquisidores como bons escolásticos. Estes que eram recomendados a torturarem as “bruxas” nuas e de costas, pois assim as fragilizava, além de evitar que as expressões de dor e desespero (tentação do ardiloso demônio) pudessem sensibilizar e comover o torturador.
        
        A estas críticas é possível objeções. Alguns historiadores tendenciosos ao cristianismo relativizaram o fenômeno da inquisição, atrelado ao Martelo das Feiticeiras, reduzindo-o a um fato isolado. Segundo essa hipótese, o eloquente e prestigioso teólogo Heinrich Kramer, um dos autores do livro, teria exagerado em muitos pontos doutrinários, não representando a posição oficial da igreja, que por consequência em 1490, colocou o manual no índice de livros proibidos. O fato é que, mesmo assim, o martelo fez muito sucesso e vigorou durante muito tempo. Porém, o mais curioso é que Kramer poderia ter exagerado no livro justamente em função de possuir um perfil problemático no que refere precisamente à sua relação com as mulheres. Ele as odiava, por razões fundamentalistas, daí tenha lançado mão de toda uma engenharia conceitual teológica para legitimar o expurgo das ditas “bruxas”. Talvez ele tenha radicalizado a demonização do pinto advinda de S. Agostinho.
        
         E por que não lembrar do inquisidor espanhol que se tornou santo? Pedro Arbués, que era conhecido como “flagelo de Zaragoza” foi morto dentro de uma igreja pelos seus algozes em 1485, e depois em 1867 foi canonizado pelo Papa Pio IX. Sua data comemorativa é dia 17 de setembro. Imaginem só ser devoto desse santo. “São Pedro Arbués, rogai por nós”!
       
         Quem deveria ser canonizado como exemplo de lucidez, tendo sido uma exceção na  ética medieval, não foi lembrado pela Igreja, nem pela história das ideias. O padre Jean Meslier, que foi um vigário no norte da França ainda feudal/medieval, tendo vivido entre 1664 a 1729, escreveu em seu manuscristo (que pode ser lido no livro “Ateísmo e Revolta”) [3] sua íntima posição a respeito de sua religião e de seu ofício. Para Meslier, as ideias de transcendência, divindade, princípio superior da natureza, eram todas falsas. Professava um ateísmo radical, mantendo-o como segredo até sua morte, enquanto se dedicava de modo comprometido no exercício do sacerdócio, não tendo corrompido nenhum fiel com sua descrença. Ninguém melhor que um padre para saber dos segredos divinos e do potencial da religião de manipular os símbolos sagrados de acordo com as finalidades políticas duma época. Meslier, dessa forma, presenciava com profunda revolta, as injustiças sociais acometidas aos camponeses miseráveis sob sua tutela, produzidas pelo jugo teocrático. Tivemos assim, o primeiro ateu revoltado, antes mesmo do iluminismo e de figuras como Sade e outros anti religiosos, que por sua condição paradoxal merece nossa atenção.              
        
        Mas não fiquemos tão somente na ética da santidade. Como propunha Kant, a ética é a expressão da razão prática. E para compreendê-la bem é necessário, antes mesmo, voltar à razão pura, ou teórica. Nesse sentido, presume-se que a ética medieval deriva da razão mais do que pura da metafísica daquela época. O mais interessante a se destacar nesse contexto são as proposições mais eloquentes e que reverberam até hoje, como a prova ontológica da existência de Deus de Santo Anselmo. São várias provas dentro do argumento ontológico que em suma podem ser sintetizadas, a grosso modo: a partir da análise da ideia de Deus, que está na mente, se deduz sua existência fora da mente (Reale e Antiseri, 2005). Com esse argumento nem os ateus poderiam refutar.
        
         Anos mais tarde, Tomás de Aquino irá reforçar a prova de S. Anselmo, passando também por Descartes e chegando em Kant, que o critica profundamente. Segundo o kantismo, há uma diferença abissal entre existência pensada e existência concreta, ademais, a partir da Crítica da razão pura, estabeleceu-se as fronteiras da razão empírica, condenada a abrir mão das pretensões transcendentais, que nada mais seriam do que um anseio por um Ideal. Este anseio seria o que S. Anselmo teria reconhecido como um “desejo em compreender um pouco da tua verdade, em que meu coração já crê e ama. Eu não procuro compreender-te para crer, mas creio para poder te compreender” (Reale e Antiseri, p.501). Em outras palavras, isto é a primazia da fé que guia a razão. Não será essa a chave para compreensão da metafísica? Sendo assim, a razão, segundo Kant, cai em erros e ilusões quando pretende fazer metafísica que não pode jamais ser ciência.

A descida do céu na modernidade
         
       Todavia, Hegel censura essa afirmação kantiana, ao passo que na Ciência da lógica ele propõe um sistema onde a metafísica nada mais seria que uma filosofia primeira ou da ideia pura, do logos. Dá onde ele afirma que “um povo sem metafísica é um povo sem altar”. Só que ele não era um teísta ingênuo, como pode parecer, na verdade Hegel concebia o Deus da lógica como elemento puro do pensamento (logos). Em última análise, seu grande Deus tem outro nome, a saber, Razão.
     
       Dessa forma a metafísica como lógica estudaria a ideia em si, que por sua vez se alienaria no ser-outro fora de si, cabendo a esta a filosofia da natureza. Neste processo, a alienação seria superada pelo reconhecimento da ideia no seu retorno a si mesma. Com efeito, a consciência que se contempla no seu outro transcendente (religião) deveria ser superada pela filosofia, enquanto reconhecimento de si, tornando assim espírito ou sujeito que se autocria como processo.
       
       Estamos falando do nascimento do discurso da subjetividade, que é o movimento da chegada do “espírito absoluto”, o momento em que Deus conhece a si mesmo, ou se quisermos, a razão se reconcilia consigo mesma. Nesse sentido, Hegel é a máxima expressão do avanço do pensamento na modernidade e a ruptura em relação a mais de mil anos de pensamento medieval, no qual, todo esse tempo a razão demorara para superar uma cisão no seu interior. Se essa separação no Deus fora de min perdura por um tempo enorme, ela chega  também a estruturar profundamente uma sociedade. A sociedade medieval era orgânica e profundamente hierarquizada temporalmente, na medida em que, existia uma hierarquia celeste. A realidade terrestre imitava e era assim justificada por uma realidade transcendente. Daí porque vemos uma mentalidade deveras diferente dos dias de hoje, pelo menos é o que se espera, apesar dos fantasmas das torturas, inquisições e cruzadas, que insistem em retornar nos dias de hoje.
       
       Isto posto, pode ficar mais claro como uma ideia de Deus é capaz de servir como critérios normativos para a estruturação de sistemas políticos e modos de relações sociais. Por exemplo, a noção de dignidade da pessoa humana, se é que existia, não era efetivada nos tempos medievais, somente na modernidade é que ela vai aparecer positivamente na Declaração dos direitos do homem e do cidadão na revolução francesa. Reconhecer a dignidade no outro é respeitar uma subjetividade, é saber que ali há um sujeito/espírito com toda riqueza e complexidade que essa noção comporta.
      
         E sendo mais uma vez hegeliano (Nietzsche dizia que o hegelianismo era uma doença que quando se pega não há mais cura), o sujeito pressupõe desejo, luta por reconhecimento, sobretudo, é um processo, vir a ser. Tornar-se sujeito é a subjetivação através do Outro. E assim, Ludwig Feuerbach, como bom hegeliano que era, elaborou sua ideia de Deus. Conforme o sistema dialético, a ideia passa do em si, ao ser-outro, culminando no retorno do em si e para si. Traduzindo para a metafísica, Deus é a mais alta subjetividade do homem, este seria o mistério da religião. O homem projeta seu ser na objetividade e assim ele se transforma em objeto submetido a essa imagem ou ente transformada em sujeito suposto Deus. Para Feuerbach, “a consciência que o homem tem do objeto é a consciência que o homem tem de si mesmo; o objeto é sua essência revelada, o seu EU verdadeiro, objetivo” (Feuerbach, p.38. 2007). Através do trabalho do homem na fabricação de seus ídolos ele exterioriza sua subjetividade, objetivando-a no “seu ser outro”. O seu ser não está no seu interior, mas nas instituições ao seu redor que representam seu núcleo “ex-timo”, fora de si.
       
          Com base numa leitura do idealismo alemão, o Eu necessita de um ponto de referencia externo, (sem o qual sucumbiria dentro de si mesmo). A visão de uma mente ou coração infinito, cuja, a essência é impenetrável, dotada de uma “Razão divina que puxa as cordinhas” do nosso destino só é, então, possível por meio da imanência do ser finito. “O agir infinito do homem está diretamente fundado na experiência de nossa finitude” (Žižek, p.262 2012).
        
          Por meio dessa perspectiva, a religião só pode ser concebida como sonho, e como tal, ela é confissão de desejos profundos. “A religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão mais intima dos seus pensamentos, a manifestação pública dos segredos de amor.” (Feuerbach, p.44. 2007).  E esses sonhos possuem a maior de todas as verdades que é a verdade do coração humano. Portanto, diante de uma realidade fria, ameaçadora, sinistra e sem sentido, Deus torna-se um coração fictício criado pelo desejo para tornar o universo ou o mundo mais humano e amigo, dotado de uma providência que de algum lugar olha por nós.
     
          O desejo não é nenhuma cognição ou saber, ele é força, potência, expressão de nostalgia de algo que nunca se teve, é esperança do novo, é negatividade criadora. Exatamente por isso, que não se refuta a religião por argumentos lógicos ou cognitivos. Daí porque ela pode se transformar, mas nunca desaparecerá, e a isto se deve às vicissitudes do desejo, que exige um mínimo de compreensão.
      
         Compreensão esta, que passa necessariamente pelo espelho que é a religião. Sua linguagem, seus símbolos e ritos, refletem aquilo que mais amamos, nós mesmos. O que a religião expressa é a divindade do homem, o caráter sagrado de seus valores, o apego pela vida, a bondade de viver. Dessa forma, se chega a uma das mais absurdas conclusões desse homem que era apaixonado pela religião e nela encontrou a imagem de si mesmo, chegando no “para si”, reconhecendo-se na imagem do espelho, sabendo que não existe ninguém lá dentro, a saber: “o segredo da religião é o ateísmo” (Alves, 2009). 
      
       Com uma conclusão dessa natureza, um religioso inflexível só poderia se escandalizar. Pois Feuerbach, substitui o Deus do céu por outra divindade, o homem concreto, de carne e osso em toda sua condição terrestre. Isso implicaria numa outra moral, onde o humanismo seria a grande referência, tendo agora como primeiro mandamento o amor ao homem em nome do homem. Com efeito, a reação da sociedade conservadora da época foi notável tendo condenado Feuerbach ao ostracismo intelectual, impedido de continuar sua carreira acadêmica e assim terminando sua vida na miséria.
     
         Ao contrário da incompreensão generalizada da sociedade em ralação à obra de  Feuerbach, este não pretendia destruir ou ridicularizar a religião, pois era um apaixonado por ela, e sim queria poder fornecer a chave de sua interpretação e transformação. Mas essa transformação é pulverizada pelos que estão assegurados na justificação religiosa de seus privilégios ou na legitimação de suas forças, já que, comerciantes, banqueiros, a burguesia ascendente, em geral, como seres de alma que são, tinham e tem necessidade de carimbar em suas posses a marca do sagrado. Dessa forma, acabam tendo a convicção de que seus bens foram frutos merecidos de seu esforço recompensado, além de proteger sua riqueza de qualquer ameaça. Não por acidente, temos em qualquer nota de dinheiro um “Deus seja louvado”.
      
        Sendo assim, o setor conservador tendeu-se a demonizar e desqualificar a crítica vinda da dita esquerda hegeliana, da qual Feuerbach fazia parte. A esquerda hegeliana combatia a fé cristã em nome de uma metafísica imanentista, que pudesse trazer o céu a terra, clarear o que até então estava encerrado na obscuridade, dar concretude à esperança depositada em um novo mundo e nova vida que existia na religião. E isso acarretaria não mais se preocupar com o reino dos céus/além mundo e sim problematizar ou politizar a sociedade.
       
         Em suma, a perspectiva de Feuerbach sobre o fenômeno religioso é a de uma redução da teologia à antropologia, Deus concebido como o espelho do homem. A essa visão, foi seguida a análise de Karl Marx da religião reduzindo a teologia às estruturas sócio- econômicas. Bem como, todos os clássicos da sociologia, Max Weber, Émile Durkheim, traçaram grandes análises da religião, mas reducionistas sob a referência apenas do fato econômico ou fato social. Frente a tudo isso, poderia surgir a objeção quanto ao resto dos conteúdos significativos do cristianismo. E seus símbolos e impacto na civilização ocidental? Não há nenhuma mensagem de cunho ontológico ou existencial na vinda do “Cristo”? Ou será mesmo que a teologia está morta para sempre sem nos servir de alguma forma à nossa vida existencial, social e política?

A teologia materialista

       O que a perspectiva filosófica de Feuerbach exprime, é um movimento de secularização mais amplo, no qual se insere não apenas a filosofia, mais a ciência de modo geral.  A modernidade como um período sócio cultural foi impulsionada pelo desenvolvimento científico tecnológico determinado pelas novas forças de produção. O mundo administrado, portanto, já teria dificuldades em acolher Deus, não sendo culpa da filosofia seu “assassínio”, antes, a “morte de Deus” se deve mais à ciência e à economia. Mas, muitas de suas formas, persistiria no mundo secular, conceitos teológicos se transformariam em conceitos políticos. Há quem diga que o próprio estado moderno é tributário da estrutura teológica cristã.
      
        Hoje podemos dizer que, Deus não morreu, mas não podemos encontra-lo pessoalmente em lugar nenhum. Isso diz muito do estatuto da crença; nós cremos porque o outro também crê, é uma crença deslocada, terceirizada em que esse outro crê por nós, que por seu turno, pode assumir o nome de cultura, tradição, costumes etc. devendo ser respeitados a cima de tudo. O Cristo, como ser, ente, unidade, perdeu sua expressão. O que sobrevive na modernidade é sua instituição que é muito mais forte.
      
         Podemos afirmar que perdemos (se é que a possuímos um dia) a experiência cristã espiritual/mística e existencial, mas estamos sob o domínio político por meio dos muitos de seus valores e preceitos justificados metafisicamente, mesmo que não acreditemos realmente em realidades sobrenaturais. Ademais, os profetas bíblicos do antigo testamento, no combate às idolatrias, já compreendiam a ambivalência da religião, ela se presta a variados objetivos, inclusive contraditórios, “tudo depende daqueles que manipulam os símbolos sagrados” ou mesmo seus conceitos, ela pode iluminar ou cegar, libertar ou escravizar. (Alves, 103).         
         
        Na sua obra Catolicismo romano e forma política (1923) [4], o ideólogo e jurista nazista Carl Schmitt, destila seu ódio à modernidade liberal. Seu pensamento é um exemplo claro de como conceitos oriundos da teologia cristã como representação, autoridade, hierarquia, legitimados por uma transcendência inexistente, podem assumir concretude ideológica em uma dada sociedade e leva-la a catástrofe. Pautado em dogmas como o do pecado original, Schmitt extrai sua visão pessimista da natureza má e corrupta do homem, donde qualquer regime político sucumbirá se não diferenciar o amigo do inimigo, do mau do bem, e dessa forma, descartar todas as ilusões de paz. Daí surge a necessidade do estado de exceção e a primazia da decisão soberana. Não por acaso, o estado nazista se constituiu numa máquina de guerra e de matança. A barbárie nazi era, assim, jurídica e religiosamente legitimada.  
       
         O dogma cristão, como podemos observar, pode ser mais pernicioso do que imaginamos. Definido como uma verdade indubitável e absoluta, o dogma não pode ser aceito na filosofia, muito menos na política, tanto para a razão teórica quanto para a razão prática/ética. A fé não requer dogmas que sejam verdadeiros e sim dogmas piedosos capazes de induzir à obediência, assim nos lembra Spinoza.  Nesse sentido, o legado cristão pode ser repensado, na medida em que, for destituída sua forma dogmática. Afinal, como afirmava o conservador T. S. Eliot, a única maneira de salvar uma religião está entre a descrença total e a heresia. Talvez é chegada a hora de evitar a religião cristã da descrença. Assim sendo, nós podemos ter acesso ao suposto núcleo subversivo do “divino” ou do cristianismo.

Cristo, sentado à “Esquerda” de Deus pai

         Primeiramente, devemos partir do problema do significado que representa Deus no cristianismo com a encarnação do Cristo. Por meio da análise cristológica de Slavoj Žižek (2005), observa-se que a única identidade do homem e de Deus é a identidade em Cristo. Mas por que Deus enviou seu filho na condição de homem, por qual razão ele se quis se fazer como tal e morrer por nós? A resposta teológica mais consensual, é da remissão dos nossos pecados, Deus teve que pagar pela nossa queda passando por nós e morrendo da forma mais humilhante possível. Mas se Deus é onipotente e onisciente ele poderia simplesmente ter evitado a queda tendo nos poupado de todo sofrimento ou mesmo evitado o livre arbítrio, já que somos livres, mas na condição que façamos a escolha certa, ou seja, somos forçados a escolhermos a única opção sensata, o bem, logo, não há liberdade absoluta nisto, somos obrigados, assim, a sermos eternamente gratos pelo seu sacrifício, do contrário, nos sentiremos culpados. Essas, são dúvidas recorrentes sobre o “mistério divino”, do qual não podemos alcançar com nossa finitude; diante desse argumento, se calam todas as hesitações. No entanto, esquecemos que mesmo o próprio Jesus, a despeito da convicção de sua condição, teve, em algum momento, dúvida sobre sua identidade.
     
        De acordo com Žižek (2005), o caráter singular do cristianismo é fundamentalmente histérico, pois dirige sua dúvida a Deus como um sujeito. No modo como nós nos compreendemos há um mínimo de histeria, na medida em que questionamos nossa identidade simbólica. Um questionamento dirigido a alguma autoridade, “por que eu sou o que diz que eu sou?” A posição subjetiva da histeria é subversiva, pois ela origina-se da dúvida, da suspeita. Não por acaso, Cristo na crucificação grita “Pai, por que tu me abandonastes?” Com essa passagem, pode-se afirmar que o que morre na cruz não é apenas o representante de Deus na terra, mas o próprio Deus do além e toda sua conotação transcendental, ou princípio divino que garante o sentido de nossas vidas. A mensagem da crucificação, portanto, é que o que morre na cruz é a garantia do grande Outro, nosso campo de referencia e horizonte de sentido, ou autoridade simbólica.  O sacrifício de Cristo, ao contrário da perspectiva da remissão dos pecados/troca, é radicalmente sem sentido, um gesto supérfluo, excessivo e injustificável. Cristo morre, mas deixa a boa nova, estamos sozinhos e com nossa liberdade diante do abismo vazio do não sentido. Não há garantias, e o que nos resta é somente o Espírito Santo [5].
        
        O que seria então o Espírito Santo numa leitura materialista? O produto do trabalho da comunidade dos crentes reunida em torno de um ideal ou Causa. O Espírito Santo, é onde Deus e o homem coincidem diretamente. A Causa produzida pela atividade dos sujeitos, sendo ela absoluta pondo as suas vidas em movimento.
    
        O Deus cristão, ao contrário da aparente onipotência enigmática do Deus judaico, precisa revelar sua impotência na medida em que se abandona e se autodestrói. Dessa forma, o Homem só pode surgir por meio da abertura do vazio no interior de Deus, sua autolimitação é condição necessária de nossa verdadeira liberdade. Isso implica descobrir que estou absolutamente só. Sendo apenas o intervalo entre dois nadas, eu devo permanecer fiel ao vazio que me precede e que me sucederá.
     
         As consequências politicas tiradas dessa perspectiva teológica estão no desmitologização de qualquer fundamento ontológico a priori que garanta a legitimidade de um ou qualquer sistema político. Isto significa, tomar consciência da possiblidade de destruição e criação de formas diferentes de vida social. Seguindo a mensagem universalista de Cristo, por meio de Paulo, nós temos que morrer para a lei, “não há judeus nem gregos, nem escravos nem livres, nem homem nem mulher”, e em outras palavras, é suspendermos as determinações/identificações simbólicas fixas que já não dão conta da multiplicidade de contradições no interior da sociedade. As tradições, a moral, não tem legitimidade ontológica verdadeira, muito menos consistência que garanta o mínimo de fundamento para modelos sócio políticos. Somente nos resta a nós mesmos, cientes de nossas experiências, contradições e finitude.        
      
        Sem referências transcendentais, estamos sós, e apesar dos estereótipos de Marx como antiquado, Albert Camus estava certo, quando afirmou que ele foi quem compreendeu que uma religião que não invoca a transcendência deveria ser chamada de política. E isso é realmente atual. O cristianismo é fundamentalmente político. Agora, nos resta descobrir o que significa nesses termos a explosão do fundamentalismo conservador, pentecostal etc. principalmente em regiões periféricas, favelas, de grandes centros urbanos, coexistindo com a emergência de uma “populaça” que escapa aos regulamentos do Estado e exige novas formas de governança.
     
        Já mencionamos a natureza ambivalente da religião que pode servir a vários interesses diversos e até mesmo contraditórios. Na confluência de religiosidade e pobreza a atividade política é a peregrinação para a terra prometida, reino dos céus, lugar da bonança, mesmo que não saibamos exatamente o que seja esse lugar. Essa é única esperança de uma vida melhor e mais justa para muitos. E isso tem um nome, utopia, um não lugar, que ainda não sabemos o que é especificamente. Reside nisso, portanto, a dimensão do desejo de um futuro novo. Entretanto, há aqueles que sonham com o velho, são saudosistas da ilusão de um passado ideal. Os poderosos eternizam o presente e combatem qualquer sinal de um futuro diferente que não seja repetição. Os fracos, por sua vez, exigem o fim do presente para que o futuro seja a realização da graça de deus para o nosso gozo eterno.
      
        Em suma, a religião está cheia de significações políticas, os homens de fé, apesar de cambaleantes em sua crença, guardam o medo, o silêncio, permanecem resignados, mas  podem esconder, sobretudo, a esperança. Este é um sentimento que prova o desejo de transformação e traz a possiblidade da criação. Com efeito, a parir dessas leituras heréticas, há total condição real de construção do Reino dos Céus aqui na terra, pois o modo de ser da existência é a possiblidade (bem dizia Kierkegaard, esse grande cristão), a isto requer resgatar a face do Deus dos oprimidos que há muito foi esquecida enquanto acontecimento histórico.  De modo a superar o medo, que é o afeto político da contemporaneidade, o qual mobiliza todos os tipos de reação e ressentimento, em prejuízo do sonho, da esperança, da utopia, do amor e da paixão, e disso a religião transborda. Um Deus com esses atributos não pode ser jamais a representação da permanência, mas sim da mudança, e essa pode ser a nossa verdadeira salvação.    

Notas:
[1] Uma mente própria. Uma história cultural do pênis. David M. Friedman. Rio de Janeiro. Objetiva, 2002.  
[2] O Martelo das Feiticeiras. Heinrich Krammer e James Sprenger.  Rosa dos ventos. 2007.
[3] Ateísmo e Revolta: Manuscritos do Padre Jean Meslier. Paulo Jonas De Lima Piva. Alemeda. 2006.
[4] Catolicismo romano e forma política. Carl Schmitt. Hugin. 1998.
[5] Baseio-me no filme de Slavoj Žižek “O guia perverso da ideologia” 2012.



Referências:
Alves, Rubem. O que é religião. São Paulo, Loyola. 2009.
Feuerbach, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópoles, RJ, Vozes.  2007
Reale, Giovanni e Antiseri, Dario. História da Filosofia, vol.4. São Paulo, Paulus. 2005.
Žižek, Slavoj. Mitologia, Loucura e Riso. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2012.
_____. As metástases do gozo. Seis ensaios sobre a Mulher e a causalidade. Lisboa. Relógiod´água. 2005.